Tecnologia

Inteligência artificial traz ameaças a direitos humanos e democracia, alerta ONU

Subsecretária-geral da ONU para comunicação global promete relatório com diretrizes para governança global do tema

As novas ferramentas de inteligência artificial fornecem a atores de desinformação uma tecnologia potente e barata, que traz preocupações sobre os efeitos colaterais nos direitos humanos e na democracia. O alerta é da subsecretária-geral da ONU para comunicação global, Melissa Fleming.

Fleming chega ao Brasil nesta terça-feira (30) para o evento paralelo ao G20: “Integridade da informação: combate à desinformação, ao discurso de ódio e às ameaças à democracia”, em São Paulo.

Em meio ao debate sobre a regulação das redes sociais no Brasil, Fleming é taxativa: é possível regulamentar as plataformas digitais sem abrir mão da liberdade de expressão. Ela conversou com o Valor da sede da ONU, em Nova York, por videochamada.

As Nações Unidas se preparam para lançar um guia de integridade da informação e vão publicar em junho relatório com diretrizes para a criação de uma governança global em inteligência artificial.

A discussão sobre a regulamentação das plataformas digitais voltou aos holofotes após o bilionário Elon Musk ameaçar descumprir ordens da Justiça brasileira no X (antigo Twitter).

Fleming demonstrou preocupação com a escalada de discursos de ódio na plataforma – que teve a equipe de moderação “completamente dizimada” – e seus impactos sobre a paz e as democracias ao redor do mundo. O X foi procurado pelo Valor, mas não respondeu aos questionamentos da reportagem.

A representante das Nações Unidas, que foi chefe de comunicação da Agência da ONU para Refugiados (Acnur) de 2009 a 2019, não ignora os pontos positivos das mídias sociais, as considera que o lado obscuro das redes emergiu sem que os governos estivessem preparados para lidar com a desinformação, o que contribuiu para um ambiente digital tóxico. A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:

Valor: O que é a integridade da informação no ambiente digital?

Melissa Fleming: Integridade da informação é, basicamente, um ecossistema de informação saudável. E o que compõe um ecossistema de informação saudável? Em primeiro lugar, é onde a liberdade de expressão pode prosperar. No qual as pessoas podem expressar suas opiniões livremente, mas também podem buscar e receber informações confiáveis.

Valor: Quais são os maiores obstáculos para alcançar a integridade da informação hoje?

Fleming: As mídias sociais entraram em cena muito rapidamente, e a maioria dos países achou que era uma adição bem-vinda ao nosso ambiente. Isso permitiria nos conectar com amigos e familiares, o que de fato aconteceu. Mesmo em situações em que as pessoas estão vulneráveis, como refugiados de guerras, eles podem se conectar com amigos e familiares e dizer que estão bem e encontrar entes queridos que estão desaparecidos. Mas o lado obscuro realmente surgiu muito rapidamente, e os governos não pareciam prontos para as implicações. E essas implicações se transformaram em consequências do mundo real. Os ataques são muito difíceis de serem retirados e realmente tornam nosso ambiente de informações tóxico. É uma situação perturbadora.

Valor: Como a ONU pode ajudar a superar essas barreiras?

Fleming: Estamos prestes a lançar princípios globais sobre integridade da informação. A ideia é fornecer recomendações para todo o mundo sobre como construir confiança e resiliência social, fortalecer uma mídia independente, livre e pluralista, além de pressionar as plataformas por mais transparência e dar apoio a quem está realizando pesquisa e a verificação de fatos. Nós não temos nenhum poder, não somos um órgão regulador. Não podemos impor nenhum tipo de restrição, mas podemos fornecer esse tipo de padrão global que pode ser integrado aos esforços nacionais.

Valor: A própria ONU é questionada por líderes da direita. Há uma crença de que organizações multilaterais estão a serviço de narrativas da esquerda. Como enfrentar essa ideia?

Fleming: Isso também é um produto da era digital. Muitos de nossos esforços ao redor do mundo foram distorcidos e interpretados de maneira equivocada para atender a determinadas narrativas conspiratórias. E os fatos são que a ONU está trabalhando ao redor do mundo para promover os direitos humanos e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). E mesmo os ODS foram questionados, mas basicamente todos os países das Nações Unidas concordaram eles em 2015. A ONU está trabalhando pela paz e segurança ao redor do mundo em ambientes muito difíceis. Por isso, é necessário advogar por um ambiente de informação mais saudável para que os esforços para tornar o mundo, os países e as comunidades mais saudáveis, seguros e justos, não sejam impedidos por atores mal-intencionados.

É possível regular as redes sociais e proteger a liberdade de expressão”

Valor: A senhora mencionou a pandemia. Esse foi um período que evidenciou a velocidade da circulação de notícias falsas, fenômeno que se repetiu com a eclosão do conflito entre Israel e o Hamas. Os esforços falharam?

Fleming: Não sei se falhamos. Durante a pandemia, estimamos ter alcançado cerca de 1 bilhão de pessoas ao redor do mundo com conteúdo baseado em fatos e ciência. Agora, muitas pessoas ignoraram ou não viram? Sim. Mas acreditamos que fizemos a diferença através desse modelo. E estamos fazendo uma campanha semelhante em torno do clima, área em que há uma grande campanha de desinformação para fazer as pessoas acreditarem que a mudança climática não existe ou não é tão ruim quanto elas pensam. Então pegamos uma narrativa de desinformação e fornecemos os fatos como uma alternativa. É uma guerra de informações. É entre fatos e mentiras. E às vezes os fatos prevalecem. Às vezes as mentiras prevalecem. Por isso que há muito mais a ser feito na criação das condições em nosso ambiente de informações, para que informações confiáveis sejam mais fáceis de acessar do que as informações que levarão as pessoas ao erro.

Valor: Ano passado, a senhora disse no Conselho de Segurança da ONU que a inteligência artificial é uma arma cada vez mais poderosa na guerra da informação. Por quê?

Fleming: Estamos realmente preocupados desde que a IA [inteligência artificial] entrou em cena. Essas novas ferramentas fornecem a atores de desinformação uma tecnologia realmente potente e acessível, muito mais barata. Vimos organizações de notícias inteiramente falsas criando artigos falsos e gerados por IA por menos de US$ 50. No futuro vai ser muito mais difícil descobrir se uma fotografia foi manipulada. Estamos preocupados com o impacto nos direitos humanos. Vimos deepfakes sendo usados para atingir mulheres e meninas com pornografia, pegando seus rostos e anexando corpos pornográficos a eles. Também estamos realmente preocupados com o impacto na democracia. A IA tem o potencial de manipulação de eleitores. Eles podem estar a poucos dias antes de ir às urnas ou tomar suas decisões quando um conteúdo já viralizou e não sabem discernir se é verdade ou não. A Assembleia Geral da ONU emitiu em março uma resolução para um consenso global sobre sistemas de IA seguros e confiáveis. O secretário-geral da ONU [António Guterres] reuniu especialistas de todo o mundo para criar um órgão consultivo sobre governança global. E as recomendações serão apresentadas em junho. O que nos encoraja é que alguns dos desenvolvedores de IA e plataformas de mídia social já estão criando marcas d’água e selos específicos para mostrar que um conteúdo foi criado por IA, mas ainda estamos preocupados.

Valor: Não existem agências ou regulamentações globais para IA. Quais são as perspectivas de algum progresso no âmbito do G20?

Fleming: O Brasil tem desempenhado um papel muito importante, não só no contexto do G20. Nós realmente sentimos a liderança do Brasil para tentar promover o diálogo e o consenso não apenas nacionalmente, mas internacionalmente, e realmente pressionar que essa é uma questão que está afetando a todos nós e que é necessário um palco internacional. O fato de um grupo de trabalho sobre economia digital ser convocado como parte do G20 demonstra que o Brasil considera esta uma questão internacional que precisa da liderança das grandes economias do mundo.

Valor: Regular as plataformas, como quer o Brasil, é um risco para a liberdade de expressão?

Fleming: Penso que algumas pessoas poderiam argumentar isso, mas quando a regulamentação é introduzida em alguns países e contextos, como no caso da União Europeia, vemos que é possível introduzir a regulamentação e proteger a liberdade de expressão ao mesmo tempo. Não é fácil e há muita tensão entre aqueles que defendem que qualquer discurso deveria poder ser falado. Mas se você entrevistar a maior parte do público, eles vão querer certas proteções. É uma linha tênue, mas acho que é necessário enfatizar a transparência, a alfabetização midiática e a capacidade dos usuários de entenderem como seus dados estão sendo usados, como os algoritmos funcionam, e que há algumas proteções em torno de informações falsas e informações que causam danos.

Valor: A senhora provavelmente está acompanhando que o bilionário Elon Musk tem mobilizado a extrema direita no Brasil. Isso representa uma ameaça à democracia?

Valor: Ele dirige uma plataforma muito poderosa. Uma plataforma que despertou nossa preocupação sobre o nível de desinformação e discurso de ódio antes dele assumir. Mas havia alguém para quem a ONU podia ligar. Havia uma equipe de confiança que podíamos contactar para alertar sobre um conteúdo que nos preocupava, e solicitar que fosse retirado. Esta equipe foi completamente dizimada. E vimos todos os tipos de atores que já foram banidos da plataforma por um bom motivo, sendo readmitidos. Houve uma completa degradação do ambiente de informação. Temos visto um aumento do discurso de ódio, do antisemitismo, da islamofobia, da misoginia e da supremacia branca. Estamos muito, muito preocupados com os efeitos que esse tipo de conteúdo circulando em uma plataforma tão influente está tendo nas democracias, na paz e na segurança em todo o mundo.

Fonte: Reprodução do Valor Econômico

Compartilhar: