A evolução tecnológica não se transforma necessariamente em aumento do bem-estar para a população – e as últimas quatro décadas, marcadas pelo advento da internet, foram particularmente ruins para a grande maioria dos trabalhadores.
Agora, com a aceleração da automação impulsionada pela inteligência artificial, o impacto deverá ser ainda mais amplo e profundo, colocando sob ameaça bons empregos e podendo acirrar a polarização social e política.
Assim dizem os economistas Daron Acemoglu e Simon Johnson, autores de Poder e Progresso – Uma luta de mil anos entre a tecnologia e a prosperidade (Objetiva; 512 páginas), que acaba de ser lançado no Brasil.
Acemoglu e Johnson, ambos professores do MIT, fazem uma análise histórica de como as inovações impactaram as sociedades e especulam a respeito do que poderá vir com a aceleração da IA.
“A tendência dos últimos 40 anos não tem sido muito boa,” Johnson disse ao Brazil Journal. “O resultado líquido, da forma como a tecnologia se desenvolveu desde 1980, tem sido bastante pouco favorável para a maioria dos trabalhadores.”
Para os autores, a inteligência artificial deveria ser empregada para aumentar a capacidade produtiva dos trabalhadores, e não para substituí-los – como tem sido o enfoque predominante neste momento.
“Se tivermos um maior número de bons empregos, haverá mais pessoas satisfeitas e menos polarização política, com menos pressão para derrubar o sistema,” disse Johnson, que já foi economista-chefe do FMI.
Acemoglu, com quem Johnson já produziu estudos anteriormente, é o coautor do celebrado Por que as nações fracassam.
Na entrevista a seguir, Johnson comenta como a IA pode ser “domada” em benefício de um maior número de trabalhadores e de como o Brasil pode transformar a nova tecnologia em oportunidade de investimento.
Vocês não parecem muito otimistas com o impacto recente das novas tecnologias. O que deixa vocês preocupados?
‘Preocupado’ é uma boa palavra. Não somos pessimistas ou otimistas. Podemos seguir um dos caminhos possíveis.
Às vezes, na história, a inovação tem sido muito boa para a maioria das pessoas. Mas outras vezes tem sido bom apenas para algumas pessoas, como tem ocorrido nos últimos anos.
O setor privado está obcecado pela automação – uma automação que substitui pessoas por máquinas, que destruirá empregos e reduzirá as oportunidades para algumas pessoas, empurrando-as para a parte mais baixa do mercado de trabalho.
Em nossa avaliação, seria preferível usar as novas tecnologias para ajudar as pessoas a desenvolver as habilidades delas. Isso ajudaria a elevar a maré para todos, e não para um pequeno grupo de pessoas.
Mas como fazer isso?
A tendência neste momento, nos EUA ao menos, é de investir na automação que substitui trabalhadores.
Não precisaria ser assim. A questão é: o que podemos fazer como professores, como sociedade, trabalhando com o governo, trabalhando com empresas, para tentar obter um resultado melhor?
Se tivermos um maior número de bons empregos haverá mais pessoas satisfeitas e menos polarização política, com menos pressão para derrubar o sistema.
Vocês enfatizam bastante os aspectos negativos das novas tecnologias para as pessoas com menos educação, que acabaram ficando para trás. Mas a economia digital trouxe a pequenos empreendedores empregos mais flexíveis. O WhatsApp ou o Instagram podem ser usados para promover um pequeno negócio ou entrar em contato com clientes. Não é algo positivo?
Claro, com certeza, essas ferramentas podem ser muito úteis para trabalhadores comuns ou pessoas do setor informal. Mas lembremos que também tivemos muitas decepções.
No início da internet, muito se falou do potencial de partilha de informação, da disponibilização mais livre de ideias, da redução de barreiras. O que obtivemos da Internet é algo muito mais concentrado.
É claro que foram criados alguns bons empregos no sector tecnológico. Mas a tendência dos últimos 40 anos não tem sido muito boa para os trabalhadores sem diploma universitário.
O resultado líquido, da forma como a tecnologia se desenvolveu desde 1980, tem sido bastante pouco favorável para a maioria dos trabalhadores. É o que dizem os dados.
Em nossa opinião, é possível alcançar um resultado melhor para essas pessoas.
Com a IA, o impacto deverá ser ainda mais profundo do que o ocorrido pela internet?
Acreditamos que haverá um impacto relevante, provavelmente não nos próximos cinco ou dez anos, mas para além disso. É fácil imaginar que a IA será usada em muitas tarefas humanas ou para ajudar os humanos na maioria das suas tarefas.
Será uma transformação profunda, em quase todas as atividades. Penso que entre 20 e 40 anos seja o prazo certo para ver o impacto de grandes transformações tecnológicas. Foi o que aconteceu com as ferrovias. Foi o caso da eletricidade, dos automóveis.
A questão será ver para quem essas novas ferramentas estão realmente sendo úteis. A lição das mídias sociais como o Facebook e outros serviços similares – mas o Facebook é o mais extremo – serve de alerta. Essas tecnologias podem ganhar um bom dinheiro manipulando as pessoas e deixando-as irritadas, mexendo com as emoções dos usuários.
Se fizermos um paralelo com a transição para a economia verde, estamos falando disso há mais de 30 anos. Mas é muito difícil criar uma governança global. Posso imaginar que será ainda mais difícil imaginar uma governança internacional para a IA – ainda mais com a disputa tecnológica entre EUA e China. O que pode ser feito efetivamente?
Concordo que será difícil. O paralelo com a comparação da energia limpa é interessante.
A respeito da energia limpa o problema é um pouco diferente. Sabemos o que precisa ser feito. Mas existem empresas poderosas e existem pessoas cujos empregos dependem de combustíveis fósseis. Apesar dos avanços tecnológicos na área, há uma oposição bem estabelecida.
O problema com a IA é um pouco diferente. O objetivo deveria ser alcançarmos melhores empregos para um grande número de pessoas. Mas não sabemos exatamente de que maneira podemos usar a IA para nos movermos nessa direção.
Já em relação à corrida tecnológica com a China, vejo alguns aspectos positivos. Incentiva o investimento, incentiva mais ciência. Mas há aspectos negativos, porque ninguém quer discutir a possibilidade de desacelerar as mudanças tecnológicas, independentemente das coisas ruins que elas possam trazer.
Portanto, não veremos uma varinha mágica por parte do governo. Não acho que a regulamentação, por si só, vá funcionar.
Precisamos mudar a direção, fazer um pivô da tecnologia, para que ela amplie a capacidade dos trabalhadores sem necessariamente substituí-los.
Um caminho possível talvez seja aumentar o portfólio das tecnologias, adicionar mais ferramentas e aplicações que aumentem a capacidade humana. Neste momento, o portfólio de IA está muito inclinado para a automação das atividades humanas.
O Brasil é um país de renda média, muito desigual. A parcela da população com diploma universitário é muito menor do que a dos EUA. O que o Brasil deveria fazer para lidar com essa transformação que se aproxima?
Há boas e más notícias para os países em desenvolvimento.
A boa notícia é que os robôs não são muito bons em trabalhos manuais. Os empregos vulneráveis agora são os de colarinho branco com algum conteúdo repetitivo.
A má notícia é que esta tecnologia se espalhará pelas fábricas, pelas manufaturas. A ideia de que um país poderia ter mão-de-obra de baixo custo a fazer coisas para o resto do mundo, como fez o Leste Asiático, será mais difícil.
O caminho mais inteligente é encontrar maneiras de definir os problemas que o Brasil tem – problemas que não sejam os do Vale do Silício.
O Vale do Silício vai trabalhar nos problemas do Vale do Silício. Eles não vão trabalhar nos problemas do Rio de Janeiro ou de qualquer outro lugar do Brasil.
Então o Brasil pode usar a IA para desenvolver soluções para o seus problemas e quem sabe vender soluções para outros países com problemas semelhantes, mais parecidos com os do Brasil do que com os do Vale do Silício.
Por que não tornar o Brasil um centro de especialização para o desenvolvimento de aplicações de IA para países em desenvolvimento?
Os economistas gostam de falar muito sobre a lei das consequências não intencionais. Acho que existe uma lei das consequências intencionais, que diz que se você não chutar para o gol você nunca marca.
Quais são seus objetivos? Se essas ideias não forem articuladas, fica difícil atingir as metas. As chances de o Vale do Silício inventar soluções que sejam adequadas para os seus desejos são próximas de zero.
É interessante que vocês não tenham citado Schumpeter no livro – e nem mesmo o conceito de ‘destruição criativa.’ Por quê?
O surgimento de novas ideias e o desaparecimento de ideias antigas é certamente algo que existe no livro, mas fica mais em segundo plano. Gastamos mais páginas tratando da natureza das invenções.
Quando inventamos novas tecnologias sobre saúde pública, esgotos e água encanada, isso foi inacreditável. Foi um pacote de inovação fantástico, novo e brilhante.
Mas quando inventamos as redes sociais, não foi bem assim.
Por que às vezes temos essas ideias fantásticas para a humanidade e às vezes inventamos coisas que não parecem ser de fato positivas? Esse foi nosso foco.
Os EUA têm hoje um baixo desemprego, e vemos um renascimento dos sindicatos. É um sinal de que os trabalhadores poderão ter mais voz para influenciar no impacto da IA?
Sim, com certeza. Já estamos vendo isso acontecer. A chegada da IA aumenta os riscos para os trabalhadores.
A greve dos roteiristas de Hollywood foi um exemplo. São eles, os trabalhadores, que devem controlar o uso da IA, não os estúdios.
Se eles apenas deixassem os estúdios fazerem o que quisessem, eles certamente reduziriam enormemente o uso de roteiristas – que ficariam ainda mais enfraquecidos.