Na segunda semana de resgates em meio às chuvas que assolam o Rio Grande do Sul, Mauro Moreira, presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária (CRVM) do estado, teve que trazer um assunto difícil para a reunião da entidade, que tem atuado em resposta às enchentes: o grande volume de corpos de animais mortos.
No curto período em que as chuvas deram uma trégua e parte da água das enchentes baixou no centro norte do Estado, milhares de carcaças de animais de rebanho, entre porcos, galinhas e aves foram aparecendo – além de bichos de estimação e animais silvestres.
Centenas de veterinários voluntários têm atendido os bichos que são resgatados com vida em pontos de acolhimento (principalmente em faculdades e universidades, onde há estrutura para o atendimento).
Muitos chegam com lacerações, com hipotermia, com glicemia baixíssima por falta de comida, com doenças ou com necessidade de amputar membros ou fazer a enucleação (retirada) de um olho, diz o veterinário.
Quase 10 mil foram resgatados até sexta-feita (9/5) pela Brigada Militar, Polícia Civil e Corpo de Bombeiros Militar no Estado. Isso sem contar os milhares acolhidos por voluntários e entidades de proteção aos animais. Uma grande parte é resgatada com saúde.
Mas nem todos tem o final feliz do cavalo que foi resgatado após três dias ilhado em um telhado, na cidade de Canoas.
Muitos simplesmente não sobrevivem – e a contagem dos corpos ainda não pode ser feita porque em muitos locais a água não ainda não baixou.
“Há rebanhos inteiros que ainda estão debaixo d’água”, diz Márcio Madalena, secretário adjunto de Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação do Rio Grande do Sul.
A agropecuária é responsável por pouco menos de 40% da economia do Estado e muitas regiões que concentram a criação de animais foram afetadas. Nas cidades de Rio Pardo, Vera Cruz e Cachoeira do Sul, por exemplo, estima-se que quase todo o gado morreu, segundo o Sindicato dos Trabalhadores Rurais na Agricultura Familiar.
Os restos mortais desses animais, se não tiverem um tratamento adequado, podem se tornar foco de disseminação de inúmeras doenças infecto-contagiosas, explica Mauro Moreira, do CVRM.
A retirada só vai poder ser feita após o fim das enchentes e deve acontecer com supervisão da Secretaria do Meio Ambiente (Sema), explica Madalena, por causa do impacto ambiental que os corpos podem causar.
A Sema está procurando locais para destinação desses e outros resíduos em parceria com os municípios.
Por enquanto, para a secretaria de Agropecuária, a prioridade é manter o bem estar dos animais de produção ainda vivos, a movimentação dos animais para locais seguros e para o abate, nos casos de animais de corte.
“Apesar de todos os problemas dos produtores, estamos conseguindo manter produção e distribuição de alimentos para evitar o desabastecimento”, afirma o secretário.
Enquanto as autoridades tentam contabilizar a destruição, diversos produtores relataram a tristeza com a perda de seus animais.
No município de Tupandi, o produtor Ivo Mayer, de 60 anos, perdeu 450 de seus 600 porcos e diz que não vai conseguir voltar a produzir.
“Em nossa atual idade, não teremos mais condições e coragem para iniciar todo o processo novamente”, relatou nas redes sociais. Segundo a prefeitura da cidade, o produtor Antenor Brum perdeu de uma vez seus 14 mil frangos quando a estrutura inteira do aviário foi levada pelas águas.
Cães e gatos
Nas cidades, tutores que conseguiram manter consigo ou se reencontrar com seus bichos de estimação procuram abrigos que recebem também os animais — uma grande parte simplesmente não tem estrutura para isso, já que a presença de bichos em meio as pessoas, sem a acomodação correta, pode gerar problemas sanitários.
O governo não ainda está fazendo um levantamento dos abrigos – responsabilidade dos municípios – mas, mesmo quando concluído, a informação sobre quais deles aceitam animais não foi incluída.
Em Porto Alegre, cerca de 70% das pessoas abrigadas relatam ter animais de estimação, segundo a prefeitura.
A secretaria de Desenvolvimento Social encaminhou parte das pessoas que estavam com seus bichos para o abrigo organizado pela PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), onde a universidade conseguiu espaços tanto para as pessoas quanto para 43 cachorros, 17 gatos e 2 porquinhos da índia.
“O canil e o gatil estão em espaços separados, mas os tutores podem visitá-los, cuidar e passear com eles”, diz Andrea Gonçalves Bandeira, decana da Escola de Ciências da Saúde da PUC que tem atuado como voluntária.
O local, no entanto, já tem 253 pessoas e está acima da capacidade — não pode receber mais ninguém.
A dificuldade não é apenas o espaço – os abrigos precisam de toda uma estrutura de apoio para receber os bichos.
“Além da alimentação, são necessários cuidados veterinários, limpeza especial”, diz Andrea. Alunos, professores e ex-alunos têm se voluntariado para isso. Além de veterinários, há profissionais de saúde, nutricionistas, psicólogos e profissionais de educação física atendendo as pessoas abrigadas.
Ela conta que os animais têm sido essenciais no apoio psicológico para os donos, que chegam muito abalados.
“Há pessoas que perderam tudo pela segunda vez”, diz ela.
No Vale dos Sinos, a Universidade Feevale está oferecendo atendimento veterinário e conseguiu montar um abrigo onde os resgatados ficaram junto com seus bichos de estimação de pequeno porte. Os maiores estão em uma área separadas, mas com acesso às famílias.
A universidade também recebeu inúmeros bichos resgatados sem os tutores e trabalha para encontrar abrigo ou os donos.
Segundo o veterinário e virólogo Fernando Spilki, da Feevale, por ali a maioria dos bichos chegou com condições clínicas leves, com poucos casos precisando ser transferidos para o hospital veterinário da universidade. Mesmo assim, faltam insumos para o atendimento inicial.
“O que falta é o básico: vermífugo, anti pulga, testes rápidos”, diz ele.
Além disso, conforme mais tempo passa desde o início das enchentes, mais frágil vai ficando a saúde dos animais resgatados, dizem os veterinários – e a situação deve piorar com o frio que atinge o Estado neste fim de semana.
Abrigos improvisados
Spilki diz que uma das principais dificuldades é a falta de uma organização central que encaminhe os recursos – às vezes sobram em um lugar doações de itens que estão em falta em outro local.
“Quem quer ajudar, não adianta fazer uma doação genérica, é melhor entrar em contato com diversas entidades para entender quem precisa do que em cada lugar”, diz Spilki.
A falta de uma rede organizada para o atendimento aos bichos também é a principal preocupação de Moreira, do CRMV.
“Não existe uma cadeia de comando, uma lista do que está faltando em cada lugar, tem 50 equipes diferentes fazendo trabalhos, às vezes falta voluntário em um lugar e sobra no outro”, diz ele.
“Para o atendimento às pessoas, mesmo que não funcione perfeitamente, existe uma rede formada de abrigos e hospitais. Claro que as pessoas são prioridade, mas em um segundo momento, é preciso pensar nos animais. Até porque existem pessoas que não saem de suas casas para não deixar os bichos de estimação”, afirma.
Segundo o presidente do conselho veterinário, após o Estado sofrer enchentes e deslizamentos em setembro de 2023, o CRMV entregou ao governo estadual um plano de ação de adaptação e preparação para o caso de novas inundações.
“Nada foi feito”, diz Moreira.
Questionado pela BBC News Brasil, o governo do Estado não comentou o plano enviado pelo conselho, mas disse em nota que está atuando na linha de frente do resgate aos animais.
“Uma equipe da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura tem prestado apoio logístico, estrutural e de pessoal ao Grupo de Resgate de Animais em Desastres (Grad), uma organização não governamental que dedicou um efetivo exclusivo para o salvamento dos animais”, disse a nota.
O Grad já resgatou mais de 500 animais — a maioria são gatos e cachorros, mas também algumas aves silvestres e guaxinins.
Além de universidades, outros locais têm montado abrigos improvisados para acolher os inúmeros bichos que estão separados de suas famílias. Em Pelotas, o estádio mais antigo do país virou um “canil solidário”.
Em Porto Alegre, além do abrigo municipal, a prefeitura contratou mais dois espaços e está providenciando um terceiro.
Mas Moreira se preocupa com o destino dos bichos após o momento de crise, considerando que muitos desses locais não poderão se tornar abrigos permanentes. Autoridades e voluntários têm trabalhado para tentar encontrar os tutores, mas muitas pessoas não vão conseguir ou ter condições de buscar os bichos.
“As pessoas perderam casas, perderam meio de vida, perderam tudo. Muitas não vão voltar para buscar os animais”, diz o veterinário. “A gente calcula que cerca de 30 mil animais vão precisar de abrigo permanente. Os municípios não têm estrutura para isso. O governador diz que vai investir bilhões, mas quanto disso vai para essa área?”
Por enquanto, diz ele, há doações e veterinários voluntários que estão bancando os tratamentos e cuidados com o próprio bolso.
“Mas e quando as doações secaram, para onde vão esses bichos?”
‘Ninguém vai ficar para trás’
A dificuldade é grande também no cuidado e tratamento de animais silvestres. Localizado a menos de 2 km da orla do rio Guaíba, o Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) do Ibama em Porto Alegre está inundado com dois metros de água, impossível de ser usado.
Felizmente, a instituição tinha se preparado para as chuvas – embora não imaginasse o tamanho da tragédia – transferindo seus animais para outros locais, portanto nenhum dos bichos abrigados ali ficou ferido.
No entanto, todos os estoques de medicamentos do centro foram destruídos.
A equipe transferiu a operação do centro para outro local e todos os funcionários do Ibama têm trabalhado ininterruptamente desde então para resgatar animais em perigo.
O objetivo inicial da instituição era se concentrar nos animais silvestres, mas quando as equipes vão para rua, não negam ajuda às inúmeras pessoas que pedem auxílio com resgates de bichos de estimação, diz o veterinário Paulo Wagner, analista ambiental e chefe do Cetas Paulo Wagner.
“Ninguém vai ser deixado pra trás”, afirmou ele em um vídeo enviado à BBC News Brasil.
Com 1,9m de altura, Wagner ficou diversas vezes com água até o pescoço nas últimas semanas para chegar a bichos ilhados.
“Alguns são muito difíceis, os gatos, por exemplo, não querem ser pegos, fogem. Estamos recebendo equipamento especial para captura. Cães assustados podem morder.”
Concentradas nos resgates, o Ibama e a Sema não tem uma estimativa de quantos animais domésticos e silvestres foram afetados pelas enchentes. Mas estimam que o estrago é “catastrófico”.
“A demanda de vida livre (animais silvestres) vai aumentar quando a água baixar”, diz Wagner.
Ele destaca que a tragédia é resultado de uma mistura de fatores naturais e ação humana.
“Nossos rios transbordam porque não respeitamos as áreas de preservação ambiental. Eles invadem áreas que já eram deles e nós ocupamos desenfreadamente. Nosso modelo de ocupação, de produção precisa mudar com urgência.”
Fonte: artigo reproduzido de BBC Brasil