Por Leandro Prazeres e João da Mata, enviados da BBC News Brasil a Porto Alegre
Tiago Venturella Both, formado em gastronomia em 2015, viu sua vida mudar radicalmente nas últimas semanas. Dono de dois restaurantes em Porto Alegre, ele jamais imaginou que um dia estaria cozinhando para centenas de pessoas em um abrigo. “Enquanto eu não conseguir fazer absolutamente nada com meus negócios, eu vou seguir cozinhando para essas pessoas”, disse Both à BBC News Brasil na quarta-feira (15/05).
O Rio Grande do Sul enfrenta o maior desastre climático de sua história, com inundações que já causaram a morte de pelo menos 151 pessoas, de acordo com a Defesa Civil. Além disso, 806 pessoas ficaram feridas, 108 estão desaparecidas, 538 mil foram desalojadas e 76,5 mil estão em abrigos.
Both se encaixa em duas categorias: é vítima e voluntário. Seus dois restaurantes, localizados no Quarto Distrito, uma das regiões mais afetadas de Porto Alegre, foram invadidos pelas águas do Rio Guaíba. “A subida foi lenta e gradativa. Recebíamos fotos dos vizinhos dizendo: ‘Está subindo’, ‘Aqui faltam uns dois centímetros’ ou ‘Começou a entrar água’. E isso gera uma ansiedade enorme”, contou Both.
Antes de se dedicar à culinária, Both trabalhou 13 anos como bancário. Após se formar em gastronomia, percorreu diversas posições em restaurantes gaúchos até se tornar proprietário de seus próprios estabelecimentos. No entanto, as enchentes trouxeram um prejuízo estimado em R$ 100 mil. “A área ficou completamente inacessível e, até hoje, só é possível chegar lá de barco”, relatou.
Diante do desastre, Both procurou maneiras de ajudar e encontrou na cozinha uma forma de contribuir. No sábado (04/05), ele se ofereceu como voluntário no clube Sogipa, que acolheu desabrigados e se tornou um centro de doações. Com a chegada das primeiras vítimas, alimentar esse contingente tornou-se uma tarefa crucial. “Eu me ofereci como cozinheiro para ajudar na alimentação. Ao ver os resgates, sabia que havia muita gente a ser alimentada”, afirmou.
Há duas semanas, Both é o responsável pela cozinha do abrigo, coordenando o trabalho de outros cozinheiros, nutricionistas e voluntários. “Os primeiros dias foram os mais caóticos. Estávamos com cerca de 500 a 600 pessoas por turno. Agora, estamos servindo em torno de 250”, explicou. Muitos desabrigados retornaram para suas casas ou foram realocados em outros abrigos.
Both inicia seu dia às 7h30, supervisionando a distribuição do café da manhã e preparando as demais refeições. “Tento sair antes do cansaço tomar conta”, disse. Ele implementou conceitos de gestão de restaurantes no abrigo, organizando o estoque de doações e orientando os voluntários para evitar desperdícios. Quatro refeições são servidas diariamente: café da manhã, almoço, lanche da tarde e jantar. “Minha preocupação foi elaborar cardápios saborosos apesar das circunstâncias”, destacou.
O cansaço físico e mental são desafios constantes. “O que mais pegou foi o cansaço mental. Chegar em casa e ver na TV os locais alagados, enquanto as redes sociais bombardeavam com informações”, relatou. Para lidar com isso, Both desligou suas redes sociais. Uma “fake news” que circulou dizia que doações não estavam sendo realizadas porque o governo barrava mercadorias sem nota fiscal. “Estávamos aqui nos matando para alimentar as pessoas enquanto diziam que as doações não chegavam”, lamentou.
Apesar dos desafios, Both não pretende parar. “Eu aguento aqui enquanto precisarem de mim. Não tenho data para parar de ser voluntário”, afirmou. Ao final da entrevista, os voluntários, que ouviram atentamente suas palavras, iniciaram uma salva de palmas em reconhecimento ao seu esforço.
Fonte: BBC News Brasil