Autoridades de São Paulo estão em alerta por causa de um opióide com uso proibido pela medicina: o nitazeno encontrado em drogas K tem potencial elevadíssimo para causar dependência e transtornos mentais
Pesquisadores da USP e Unicamp encontraram um novo opióide misturado a drogas sintéticas vendidas em São Paulo. A substância tem um poder devastador no usuário, mais perigoso do que a heroína ou o fentanil.
Estamos longe do centro de São paulo. É nesse terminal de ônibus, na zona leste da capital paulista, um lugar movimentado, de dia, que dezenas de pessoas consomem drogas K.
A droga é conhecida como K – seguida por números – ou spice, especiaria em inglês. Lado a lado, os usuários sentem os efeitos.
Um usuário da droga, que estava no local da reportagem, afirmou que a substância deixa uma pessoa apagada por cerca de duas horas.
- Repórter: o que é aquilo ali?
- Usuário 1: é o k9. É o que se faz. Você fuma e desliga.
- Repórter: fica quanto tempo apagado?
- Usuário 1: coisa de uma, duas horas.
O vício fez esse rapaz de 23 anos deixar para trás o emprego, casa.
- Repórter: Você perdeu tudo de seis meses para cá?
- Usuário 1: Seis meses. Vendi o carro, comecei a discutir com a família e vim para a rua. Digo até que neurônio. Antes, eu era uma pessoa bem mais rápida, bem mais ligeira. Hoje sinto uma pessoa mais devagar, bem mais burra, digamos.
Na parte de cima do terminal de ônibus, a gente tem os passageiros que circulam saindo do local onde se pega os trens. Do outro lado, próximo ao metrô e perto das grades da estação, é possível ver uma situação bastante difícil: um homem curvado, parado já há algum tempo.2 de 3
É uma imagem chocante, no meio do vai e vem do transporte público. Ele tinha usado a droga momentos antes.
Um segundo usuário de 25 anos estava dormindo e acordou com a chegada da reportagem. São jovens, gente ainda mais nova, que nem começou a vida direito. Nos arredores da estação, restam vazios os frascos usados para guardar droga.
A preocupação com as drogas K aumenta com a mais recente descoberta de pesquisadores da USP e da Unicamp. Eles ajudaram a polícia técnico-científica de São Paulo a identificar a presença de nitazeno em drogas que foram apreendidas no estado.
Um opióide extremamente forte, que torna a droga ainda mais perigosa, bastando uma pequena quantidade para causar efeito. O mesmo grupo já tinha detectado o fentanil, um potente anestésico.
Maurício Yonamine, professor de toxicologia da faculdade de ciências farmacêuticas da USP, afirma que o fentanil é 50 vezes mais forte que a heroína.
“Esses nitazeno são cerca de 10 vezes a 20 vezes mais potentes do que o fentanil, então, o que a gente tem é uma droga com potencial de causar dependência muito grande e potencial de causar fatalidades também muito grande”.
Até 2020, a quantidade de drogas K apreendidas pela polícia civil do estado não passava de alguns gramas. Em 2021, já saltou para cerca de 5 quilos. No ano seguinte, 51 quilos e em 2023, foram 157 quilos.3 de 3 Estudo aponta que 157,1 kg foram apreendidos em São Paulo no ano passado — Foto: Jornal Nacional | g1
A rede pública de saúde também sente o impacto. Na unidade mantida pelo governo paulista para tratar dependentes químicos, dos pacientes que foram questionados, 36% disseram ter usado drogas K recentemente.
No ano passado, a secretaria municipal registrou 1099 casos suspeitos de intoxicação por drogas sintéticas.
O professor de psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) explica que esse tipo de entorpecente pode levar a transtornos mentais para quem já tem essa predisposição.
“Podem ser o gatilho para o início de um quadro de esquizofrenia, de transtorno bipolar. Ela tem dentre os seus impactos, esse efeito de causar aumento da adrenalina no corpo, que vai gerar reações de luta ou fuga. Então a gente vai ficar preparado para lutar ou fugir. E isso inclui, por exemplo, uma tensão muscular, essa coisa de ficar mais travado, pilhado, pronto para ter uma reação mais agressiva, se necessário”, diz Thiago Marques Fidalgo, professor do departamento de psiquiatria da Unifesp.
Origem
O nitazeno surgiu na década de 1950 em pesquisas farmacêuticas, mas por causa da alta potência, nunca foi aprovado para uso na medicina. E se conhece bem pouco dos seus efeitos.
“O nitazeno foi sintetizado para ser medicamento, mas nunca foi utilizado para tal. De tal forma que a gente não sabe, pois nunca foi utilizado para humanos uma quantidade grande. A gente não tem essa informação”, afirma o professor de toxicologia da faculdade de ciências farmacêuticas da USP, Maurício Yonamine.
O que já se sabe é o que essa droga tira de quem usa. Um terceiro usuário afirma: “minha vontade de me movimentar, minha vontade de comer. Nem me olhar no espelho eu consigo mais. Não tem nada, nem amor próprio mais. O vício me tirou tudo: a vontade de viver, a vontade de sonhar. Novamente, tirou tudo”.
O Departamento de Narcóticos do estado de São Paulo afirmou que as drogas K são manipuladas, principalmente, em países asiáticos e europeus e que, muito provavelmente, o nitazeno já vem adicionado nesses entorpecentes.
A Secretaria Estadual da Saúde informou que possui um centro especializado em tratar pessoas que enfrentam problemas relacionados ao uso do crack e de outras drogas. Segundo a Secretaria, a unidade funciona 24 horas por dia e os dependentes químicos passam por triagem e avaliação médica. Se necessário, ficam internados ou são encaminhados para outros serviços de saúde.