Saúde Mental

Perversão e sadismo no playground digital: escravidão virtual de meninas no aplicativo Discord

Imagem por Freepik

Entendendo o sadismo

No senso comum, é habitual o uso do termo “perversão” para designar atos de crueldade, maldade e comportamentos abusivos de forma geral. Já na psicanálise, porém, perversão é entendida como um funcionamento psíquico que se refere a práticas sexuais que não se limitam ao coito. Segundo Laplanche e Pontalis (1992, p. 341), “Num sentido mais abrangente, perversão tem a conotação da totalidade do comportamento psicossexual que acompanha tais meios atípicos de obter-se prazer sexual.” Destaca-se aqui que a sexualidade humana é entendida como psicossexualidade, de modo que pode ocorrer a modificação subjetiva da natureza sexual pelo ser desejante, ou seja, o humano, com relação ao objeto de desejo, não se prendendo aos padrões sexuais primitivos de outros animais. Assim, não é necessária a crueldade para haver a perversão, tampouco se refere sempre a uma conduta delinquente.

Dentro desse termo, que pode chegar a transtornos antissociais e criminosos, estão as parafilias, formas de perversão que se referem a comportamentos sexuais fora da norma social. Fetiches consentidos, por exemplo, também se encaixam nessa definição, destacando que, do ponto de vista psicanalítico, perversão nem sempre implica criminalidade ou crueldade.

Com relação à conduta criminosa e ao tópico dessa matéria, chega-se ao sadismo, termo bastante conhecido e designado às pessoas que buscam inferir dor, humilhação e controle sobre outras, que são vistas como “objetos”. É um tipo de parafilia que, como as outras, pode ou não se tornar criminosa na medida em que há o agir ativo e a falta de consentimento do outro, a vítima. O DSM-5 classifica o transtorno do sadismo sexual como transtorno parafílico, e utiliza como critérios diagnósticos:

“A. Por um período de, pelo menos, seis meses, excitação sexual recorrente e intensa resultante de sofrimento físico ou psicológico de outra pessoa, conforme manifestado por fantasias, impulsos ou comportamentos.

B. O indivíduo coloca em prática esses impulsos com pessoa que não consentiu, ou os impulsos ou as fantasias sexuais causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo”.

Há ainda indivíduos que não reconhecem o interesse sexual por trás das práticas sádicas e negam qualquer tipo de fantasia e impulso nesse sentido, apesar disso essas pessoas podem ser diagnosticadas com transtorno do sadismo sexual se atingirem os critérios citados anteriormente, mesmo relatando a falta de autorreconhecimento de tais.

Ademais, de acordo com Dalgarrondo (2008) no livro “Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais”, a crueldade e o sadismo são traços frequentes em indivíduos sociopatas, ou seja, aqueles que apresentam transtorno de personalidade antissocial. E o DSM-5 ainda destaca o diagnóstico diferencial do transtorno do sadismo sexual, podendo estar associado a outros transtornos mentais, trazendo também o exemplo do transtorno de personalidade antissocial.

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Casos de escravidão virtual no Discord

Nos últimos anos, diversos casos de “escravidão virtual” envolvendo meninas menores de idade têm vindo à tona. Elas são humilhadas, chantageadas e violentadas mesmo estando a quilômetros de distância de seus agressores. Por exemplo, em 2023 em uma única operação, doze homens foram detidos por crimes desse tipo.

A ferramenta utilizada era o aplicativo Discord, em que é possível criar servidores privados e fazer vídeos ao vivo com centenas de espectadores e de difícil controle e supervisão por parte do aplicativo, tornando o espaço quase uma “terra sem lei”, o que deu subsídio para que esses crimes pudessem acontecer.

O modus operandi é o mesmo: o primeiro passo é buscar informações pessoais através de doxxing1 e cyberstalking2, ou conseguir fotos íntimas das vítimas, seja seduzindo-as ou por outros meios. E então, munidos desses instrumentos, os criminosos passam a chantagear as adolescentes, ameaçando divulgar fotos e vídeos íntimos para família e colegas, ou as convencendo de que sofrerão outras retaliações caso não obedeçam ao agressor. Dessa forma, eles garantem que as meninas entrem em um acordo de “escravidão virtual” onde serão sujeitas a ordens extremas de mutilação, abuso sexual, incluindo a introdução de objetos (como por exemplo pasta de dente e até facas) em seus órgãos genitais, crueldade e até assassinato com seus próprios animais de estimação e diversos tipos de humilhação e autoflagelação. Isso tudo sendo feito durante chamadas ao vivo, as vezes com centenas de espectadores, e gravado pelos criminosos que dividem esses conteúdos em arquivos, catalogando-as. Com isso, percebe-se o sadismo, uma vez que os autores dos crimes nadificam as vítimas, com o objetivo de assumir uma posição de controle sobre elas.

O que diz o aplicativo sobre o tema?

Em nota, a plataforma diz que o Discord é amplamente utilizado pelas pessoas para ter interações positivas e encontrar pertencimento online. No Brasil, 99.9% das comunidades do Discord nunca violaram nossas políticas. Temos uma política de tolerância zero para atividades em nossa plataforma que sejam potencialmente prejudiciais à sociedade e estamos comprometidos em garantir que seja um lugar positivo e seguro para todos.” Também afirmam que há colaboração efetiva com a justiça e workshops no ano passado foram organizados pelo Ciberlab, onde representantes do Discord participaram. Também afirmam esses representantes: Por meio de nossos esforços em combater as ameaças à segurança infantil, nós proativamente removemos 98% das comunidades que identificamos nos últimos seis meses por mostrar material com abuso de crianças no Brasil.Atualmente, mais de 15% de nossa equipe está focada no tema de segurança – isso significa que temos mais funcionários trabalhando em segurança do que em marketing. Isso mostra como o tema é prioritário para nós para termos uma plataforma segura para os usuários.Temos cuidado especial com os usuários brasileiros e estamos ativamente buscando parcerias no Brasil com pessoas e entidades especializadas em temas de segurança infantil”.

Orientações aos pais

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Especialistas comentam que é imprescindível a ajuda da família para identificar possíveis situações de risco. Uma pesquisa realizada com cerca de 3 mil adolescentes com idades variando de 11 a 18 anos apontou que entre os analisados, 238 se isolavam da família e amigos, passando mais de 6 horas por dia dentro do quarto, sem contato social físico e sem a supervisão parental, muitos encontram diversas possibilidades de agredir a si mesmo e aos outros, física ou psicologicamente, na internet.

É imprescindível que haja a supervisão do conteúdo consumido por menores de idade na internet, assim como os aplicativos que eles utilizam, principalmente redes sociais. Mudanças de comportamento também são sinais essenciais em casos que envolvam a saúde mental e, em casos de abuso como esse, algumas mudanças se mostram mais significativas como, por exemplo, o uso de roupas compridas não condizente com o clima, pode indicar uma tentativa de esconder marcas de automutilação, mudanças no padrão de sono ou alimentação e até mesmo a regressão, como crises de choro e fazer xixi na cama, podem indiciar abuso sexual.

É importante que a criança ou o adolescente tenha uma rede de apoio de, pelo menos, um adulto em que ela possa confiar, seja um familiar, responsável, professor ou um psicoterapeuta. Em caso de suspeita de violência sexual a forma de manejar a situação é de extrema importância, pois o indivíduo já passou por um trauma e a intenção é criar um espaço de acolhimento e não a assustar. Em um caso como o da matéria, além do sofrimento, se adiciona o medo causado pelas ameaças dos agressores, sendo importante que haja esse espaço de confiança para que ela entenda que é uma vítima e não será punida. Sob quaisquer suspeitas, deve-se acionar as autoridades legais e competentes para avaliar e lidar da melhor forma com o aval da lei.

1 Doxxing: prática de vazar informações pessoais de terceiros na internet.

2 Cyberstalking: tipo de assédio online que utiliza a tecnologia para perseguir, monitorar e ameaçar vítimas.

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