No interior dos seus 80 anos, completados em 25 de agosto, Carlos Alberto Libânio Christo, mineiro de Belo Horizonte, comprimiu muitas vivências: de frade dominicano, jornalista, historiador, romancista, crítico teatral, teólogo, assistente de direção de José Celso Martinez Corrêa no mítico Teatro Oficina, assessor de movimentos pastorais e sociais, coordenador de mobilização social do programa Fome Zero, sempre militante político e dos direitos humanos e até emérito dançarino, como confessa nesta conversa com Brasil de Fato RS.
Rivalizam com sua nova idade, os 74 livros publicados, quase um para cada ano de vida. Nas próximas linhas, Frei Betto fala de derrotas e vitórias, das ameaças de hoje à sobrevivência da espécie humana, dos anos de prisão, do governo Lula e das batalhas contra a desigualdade, do teórico Friedrich Engels que identificou nos primeiros cristãos que dobraram Roma os primeiros comunistas, do papel da juventude brasileira, dos políticos que se apresentam como palhaços ou “antipolíticos” e muito mais.
Brasil de Fato RS: Agora, aos 80 anos, olhando para trás, qual foi a maior vitória e a maior derrota da tua geração?
Frei Betto: A maior vitória foi a derrubada da ditadura. A gente lutou muito, 21 anos, muitos foram assassinados, outros desaparecidos, exilados, banidos, mas conseguimos colocar a ditadura abaixo. Por isso, hoje, temos que intensificar a recuperação da memória daquele tempo de atrocidades para que esse passado não se repita no futuro. A grande vitória nossa foi conseguir derrubar a ditadura militar e, agora, estou lembrando aí do 8 de janeiro de 2023, impedir que esses neofascistas voltem ao poder.
Betto, tu contaste uma vez que, aos 41 anos, uma cartomante teria dito que viverias só até os 57. Ou seja, estás no lucro, né?
Estou no lucro, inclusive pela estatística do IBGE. A média de vida dos homens no Brasil é de 73 anos e eu já estou aí com sete anos de lucro.
Sempre [havia] aquela coisa: ‘Vocês todos serão fuzilados’
E com saúde. Houve algum momento na tua vida em que achaste que poderias morrer?
Achei que poderia morrer quando tive um acidente de carro na adolescência. Estava guiando o carro um amigo que depois se tornou um premiado automobilista brasileiro, Toninho da Matta. Era piloto e durante muitos anos trabalhou nas montadoras provando carros que saíam da linha de montagem. Lembro também do período da ditadura, quando havia sequestro de diplomatas. Aí, as ameaças [de represália] dentro do presídio eram muito fortes. Inclusive os advogados e familiares eram proibidos de nos visitar. Sempre [havia] aquela coisa: ‘Vocês todos serão fuzilados’. E eu entregava minha alma a Deus. Enfim, seja o que Deus quiser, né?
Não tenho inveja de quem me derrotou em algumas ocasiões. Jamais gostaria de ser como eles
Uso uma expressão que meus amigos não gostam. ‘Não, não diga isso’, dizem. Mas sou muito realista, pé no chão. Falo que, agora com 80, entrei no corredor da morte. E por que digo isso? Porque sei que 80% das pessoas que completam 80 anos não completam 90 anos, né? Então, tenho consciência disso e não quero voltar [como] digo aos meus amigos espíritas. Sou uma pessoa muito feliz. Tenho uma vida de que me orgulho, da minha trajetória. Sempre fui uma pessoa comprometida com defesa dos direitos humanos, sempre fui uma pessoa de esquerda, sou um cristão inveterado, discípulo de Jesus de Nazaré, aliás, sobre o qual estou escrevendo agora quatro livros. E me sinto muito feliz na vida pelas opções que fiz. Não tenho nenhuma inveja daqueles que conseguiram me derrotar em algumas ocasiões. Jamais gostaria de ser como eles.
Tem alguma coisa que ainda não fizeste e que gostarias de fazer nesse tempo que tens?
Não, eu brinco dizendo que, na próxima encarnação, quero voltar bailarino. Uma das coisas que mais gosto de fazer é dançar. Dancei muito na adolescência, muito. Tenho ritmo no corpo, sou um bom sambista de escola de samba, daquele de sapateado no pé. Só tem um problema: não posso mais dançar, mesmo entre amigos, por causa do diabo do celular. Quando não tinha celular, ainda na intimidade eu dançava. Agora não, porque isso vira meme. E aí sabe como é… Os inimigos postam, né?
Frei Betto: ‘Não tenho inveja de quem me derrotou em algumas ocasiões. Jamais gostaria de ser como eles’ / Reprodução
Acabou com a nossa vida esse celular.
Exatamente, então não posso nem brincar mais, né?
Antônio Cândido, crítico literário, dizia que a maior conquista do socialismo não foi nos países socialistas e sim na Europa Ocidental
Quero voltar à primeira pergunta porque tu respondeste qual foi a maior vitória, mas não qual o maior fracasso da tua geração.
Acho que o maior fracasso da minha geração foi a gente não ter conseguido manter no mundo o projeto socialista. Ele se deteriorou por várias razões.
Eu, inclusive, escrevi um livro dos meus 33 anos de viagens ao mundo socialista, o ‘Paraíso Perdido’. Depois vocês divulgam aí o meu site, né? (freibetto.org) Lá, eu conto toda essa trajetória. Lamento muito a queda do Muro de Berlim. Não que eu apoiasse e não apoio aqueles modelos de socialismo. Mas a bipolaridade no planeta era um fator de equilíbrio. O Antônio Cândido, crítico literário, dizia que a maior conquista do socialismo não foi nos países socialistas e sim na Europa Ocidental. Com medo de perder os dedos, a burguesia europeia cedeu à classe trabalhadora direitos muito fortes, muito representativos, com medo de que a classe trabalhadora se voltasse para o socialismo, para o comunismo. E com a queda do Muro de Berlim acabou a farra. Ou seja, hoje, a Europa vive uma situação de miséria, de exclusão, de preconceito, discriminação, tudo isso que vemos no noticiário.
Outra coisa que gostaria de pontuar contigo são os anos de prisão. Foram quatro, de 1968 a 1972?
Não, eu fui preso duas vezes, 15 dias no início de junho de 1964, na raiz do golpe, no Rio. Depois, fui preso aí no Rio Grande do Sul em 1969 e trazido, um mês depois, para São Paulo. Fiquei [preso] até o fim de 1973. Durante dois anos convivi com presos políticos e [mais] dois anos, que é um caso raro, entre presos comuns.
E esse período coincidiu com o sequestro dos embaixadores dos Estados Unidos e da Alemanha?
Não, o dos Estados Unidos foi em setembro de 1969. Só fui preso em novembro de 1969 em Porto Alegre. Coincidiu com o sequestro do cônsul do Japão (Nobuo Okuchi) em São Paulo e dos embaixadores alemão (Ehrenfried Von Holleben) e suíço (Giovanni Bucher).
Esta tua condição de preso político também se vincula a tua ideia do cristianismo. Já falaste mais de uma vez que és discípulo de um preso político. Que foi torturado e morto na condição de preso político.
Exatamente. Jesus foi preso, torturado, julgado por dois poderes políticos e condenado à pena de morte dos romanos, que era a cruz. Aliás, durante a prisão escrevi quatro livros: ‘Cartas da Prisão’, ‘Batismo de Sangue’, que inclusive virou filme dirigido pelo Helvécio Ratton, ‘Diário de Fernando’, que tem o subtítulo de ‘Nos Cárceres da Ditadura Militar Brasileira’, e um romance intitulado ‘Dia de Ângelo’.
Há uma conspiração para sepultar a memória e as pessoas não lembrarem que os torturadores estão soltos
Por falar em Batismo de Sangue, o teu livro e o filme, o Helvécio Ratton, aliás, é mineiro que nem tu, né?
Exatamente, somos mineiros.
Agora surgiu uma expectativa bem grande no Brasil diante da, digamos assim, biografia da Eunice Paiva, mulher do Rubens Paiva, que é o filme do Walter Salles Jr., Ainda Estou Aqui, baseado no livro do Marcelo Rubens Paiva. Imagino que estejas compartilhando também essa expectativa.
Também estou louco para ver o filme. O livro é muito bom e é muito importante a gente manter viva essa memória porque as novas gerações não têm ideia do que foram os 21 anos de ditadura no Brasil. Em debates com alunos do ensino médio, muitos deles me disseram: ‘Mas eu não sabia que essas coisas tinham ocorrido aqui, eu pensava que só ocorreram na Argentina e no Chile’. De fato, há toda uma conspiração para sepultar essa memória e as pessoas não lembrarem que, no caso do Brasil, os torturadores, assassinos, estupradores estão soltos. Não foram punidos, ao contrário do que aconteceu na Argentina, no Chile e no Uruguai, onde todos foram severamente punidos e, na Argentina, com prisão perpétua, inclusive generais. E aqui continuam isentos por causa da esdrúxula lei da anistia. A gente precisa bater forte para que isso seja superado.
Alguma expectativa quando à retomada da Comissão Nacional da Verdade?
Já demos um passo agora no terceiro mandato do Lula, que foi a volta da Comissão de Mortos e Desaparecidos. Mas precisaria também restaurar a Comissão da Verdade, apurar severamente. Mas, para isso, é preciso mudar no Supremo Tribunal Federal essa lei da anistia recíproca, que é uma aberração jurídica. Como é que você pode anistiar quem sequer foi investigado e condenado?
Fidel foi o primeiro chefe de Estado comunista a analisar o fenômeno religioso dialeticamente
E não se mexeu também naqueles crimes que foram praticados depois da lei da anistia…
Exatamente. Eu levantei, no Arquivo Nacional, toda a minha folha corrida. Tudo aquilo que a ditadura havia apurado sobre a minha pessoa. Descobri que vai até 1992 e a ditadura acabou em 1985. Tem documentação de agentes do SNI, o Serviço Nacional de Informações, até 1992. E, curiosamente, muitos deles vivendo no exterior e baseados em notícia de jornal. Ou seja, os safados iam para o exterior, viviam lá em condição de diplomatas, ganhavam uma fortuna e sequer investigavam. Ficavam lendo jornal, aí tinha um brasileiro lá de esquerda e eles mandavam isso como informação…
No documentário ‘Vai pra Cuba, Eduardo’, do qual você participa e conta a história sobre o teu livro sobre a religião em Cuba e a tua conversa com Fidel (Castro), quando você pergunta para ele por que Cuba era um país confessional e que o Fidel se assusta: ‘Como assim, confessional?’
Exatamente. Isso está no ‘Fidel e a Religião’, que é um livro editado aqui no Brasil, agora, pela Companhia das Letras. Esse livro foi, de todos os que produzi, o mais vendido no mundo. Foi editado em 23 idiomas e 32 países. É um dos mais vendidos da história de Cuba com mais de um milhão de exemplares. O livro mudou a Constituição do país. Cuba era um país oficialmente ateu e passou a ser um país oficialmente laico, como o Brasil. E mudou o Estatuto do Partido Comunista de Cuba, que também era oficialmente ateu. Só quem se declarasse ateu ingressava no partido. Hoje, não. Qualquer católico, evangélico, espírita, judeu, muçulmano, pode ingressar no Partido Comunista de Cuba. Foram avanços importantes. O livro trouxe liberdade religiosa à Cuba. Acho que o carinho que os cubanos têm a mim é porque é um povo muito religioso. Cuba tem aquela característica sincrética que predomina na Bahia, essa mescla entre cristianismo e matriz africana. E o povo é muito agradecido por essa conquista, graças ao Fidel, porque foi o primeiro chefe de Estado comunista no poder a analisar o fenômeno religioso dialeticamente. Ou seja, a religião, como a política, pode servir para oprimir, mas pode servir para libertar. Creio que isso foi o grande mérito do livro.
Engels defende a tese de que os primeiros cristãos que derrubaram o Império Romano foram os primeiros comunistas
Algumas pessoas ainda se escandalizam com a expressão ‘comunista-cristão’, como se esses termos se rechaçassem ao mesmo tempo. Na verdade, tem muita gente, eu imagino que até você se apresente como comunista-cristão, ou não?
Eu, na verdade, não me apresento como comunista-cristão porque acho que já ao dizer que é cristão significa que você está a favor de um projeto comunista de sociedade, comunista no sentido de colocar em comum os bens da terra e os frutos do trabalho humano.
Um dos livros da bibliografia marxista é do teórico Friedrich Engels. Engels era o companheiro de Karl Marx. Enquanto Marx viveu, os dois escreveram à quatro mãos. E o Engels escreveu um livro chamado ‘Cristianismo Primitivo’, em que defende a tese de que os primeiros cristãos que derrubaram o Império Romano foram os primeiros comunistas. E na tetralogia que estou lançando agora, pela Editora Vozes, faço uma releitura da mensagem de Jesus para quem não tem cabeça nem tempo de fazer curso bíblico. Já foram lançados dois livros, o ‘Jesus Militante’, sobre o Evangelho de Marcos, e o ‘Jesus Rebelde’, sobre o Evangelho de Mateus. Até o fim do ano deve sair o J’esus Revolucionário’, sobre o Evangelho de Lucas, e o ano que vem, sobre o Evangelho de João. Aí eu defendo que Jesus não veio nem fundar uma igreja, nem fundar uma religião. Ele veio restaurar o projeto de Deus para a história humana, que ele chamava de Reino de Deus. Que a igreja colocou lá no céu mas, na cabeça de Jesus, estava lá na frente, era uma utopia, baseada em dois pilares, nas relações pessoais, o amor, e nas relações sociais, a partilha dos bens. Então, sabe, para mim isso é comunismo, isso é socialismo, não importa que ismo você utiliza. Não vejo saída para a humanidade a não ser com o fim da apropriação privada da riqueza, e a partilha dos bens da natureza e das riquezas.
Até porque os estudiosos do tema dizem que, para se manter, por exemplo, o nível de vida e consumo de um cidadão norte-americano ou da Europa ocidental, nós precisaríamos de cinco planetas iguais à Terra.
É verdade.
Então não tem solução a não ser reduzir o consumo e partilhar as coisas.
É verdade. Um dado que tenho, por exemplo, é que um americano individualmente consome por ano o que 55 indianos consomem [no mesmo período]. Cinquenta e cinco indianos! Ou a gente faz um puxadinho, um planeta B, e isso não tem como, né?
A natureza pode nos extinguir tranquilamente e prosseguir o seu futuro sem a nossa incômoda presença
É isso que o Elon Musk quer fazer.
Pode ser que ele consiga, não sei. Tem que aprender com aquele passarinho chamado João de Barro que faz lá um puxadinho para o filho dele. Mas enquanto a gente não aprender não vai ser possível. Vamos ter que viver aqui mesmo. Só não sei se a natureza vai nos suportar por muito tempo. Por quê? Porque nós somos uma espécie muito recente nos 13,7 bilhões de anos do surgimento do universo. Nós, seres humanos, surgimos no planeta Terra há apenas 250 mil anos. E a natureza, ao longo da sua história, já anulou, cancelou várias espécies, a mais famosa é dos dinossauros 70 milhões de anos atrás. E ela em nada necessita de nós. E nós tudo necessitamos dela. Tudo. A natureza pode nos extinguir tranquilamente e prosseguir o seu futuro sem a nossa incômoda presença. Nós é que temos que cuidar dela. Se você parar numa cidade de capinar, podar árvore, cortar, limpar, etc., em dez anos essa cidade está engolida pela sua originária floresta. Ou seja, nós somos os invasores. Precisamos encontrar, como os indígenas, uma relação de alteridade com a natureza. Mas a nossa mentalidade é a mentalidade da submissão, da exploração, da extração irresponsável e por aí vai.
Sentimos bem isso aqui no Rio Grande do Sul.
Exatamente. Foram comendo as beiradas dos rios e deu no que deu. Os rios estão reclamando seu espaço. O espaço é deles.
Celebramos no último 7 de Setembro, do dito Dia da Independência, os 30 anos do Grito dos Excluídos, onde o tema foi ‘Todas as vidas importam, mas importam para quem?’
Exatamente.
Trazendo mais uma vez esse questionamento da questão da desigualdade nesse país…
Creio que o governo Lula, mais uma vez, como fez lá atrás, e a Dilma Rousseff também, está conseguindo reduzir essa desigualdade. O número de famintos baixou muito. O Brasil vai voltar em breve a ser eliminado do mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU) em que o país ingressou com o governo Temer e permaneceu com o governo Bolsonaro. Já tinha saído lá atrás no primeiro mandato do Lula. O número de desempregados baixou para menos de oito milhões. E, no governo Bolsonaro, era de 14 milhões. Estamos caminhando, mas falta muito. Nossas estruturas são muito viciadas e favorecem a desigualdade. É um absurdo a riqueza da elite brasileira, a concentração, inclusive o que ela mantém nos paraísos fiscais.
Mas o que me causa muita indignação e o governo não está conseguindo enfrentar são as desonerações de impostos. Quanto mais rico, menos imposto paga. São mais de R$ 600 bilhões de desoneração. Imagina se o governo tivesse condições políticas de baixar o tacão e falar ‘Não, vocês têm que pagar impostos, porque todos nós, assalariados, pagamos impostos, inclusive em tudo que consumimos’. Esse pessoal não paga. Embute aí nas notas fiscais, no caixa da empresa e vai levando. Já tive rico, amigo meu, falando ‘Puxa, mas você paga imposto?’ Eu pago. Não que eu tenha grande rendimento, mas minha declaração é complicada por causa da minha renda que vem de muitos livros, de várias editoras e de palestras, também de vários contratos. Precisamos de uma reforma tributária de fato. Agora houve aí um primeiro passo, mas ainda não é suficiente.
Temos percebido que os liberais ou neoliberais, como se chamam agora, apesar do nome se dão muito bem, obrigado, com a extrema direita.
Certo.
Tanto é que o partido do Jair Bolsonaro chama-se Partido Liberal. Não é? No Chile, por exemplo, nos anos 1970, com o [general Augusto] Pinochet, foi onde começou a grande experiência das teses neoliberais, da privatização, da venda do patrimônio público, enfim. No Brasil, vimos isso com o governo Bolsonaro e mais recentemente estamos vendo com Javier Milei na Argentina. O liberalismo sempre se afirmou, desde o século 19, como o palco das liberdades. No entanto, ele tem essa convivência muito afim com a extrema direita. Como vê essa aproximação?
Só acreditarei numa verdadeira democracia no dia que a política se somar com a democracia econômica
Na verdade, é uma contradição. Tanto o liberalismo quanto a democracia burguesa são liberais no sentido de excluir a maioria da população da economia. Ou seja, democracia é você ir votar a cada dois anos, mas sem que a riqueza seja partilhada. Só acreditarei numa verdadeira democracia no dia que a política se somar com a democracia econômica. Sem democracia econômica, sem distribuição de renda, isso é uma mentira, uma falácia.
É a democracia relativa.
Exatamente. E hoje, por causa da queda do Muro de Berlim e por causa das redes digitais, há uma ascensão da direita. Por quê? Porque ela é dona das grandes plataformas digitais, que têm muito poder. É uma questão que a humanidade terá que resolver urgentemente. É um absurdo que essas ferramentas tão poderosas estejam em mãos privadas. Estamos acompanhando o conflito entre o Elon Musk e o Supremo Tribunal Federal. É preciso acabar com isso. Esse pessoal emite fake news, uma série de mentiras e vai fazendo a cabeça das pessoas. E como as pessoas, com toda razão, estão decepcionadas com a política e com os políticos, hoje os supostos antipolíticos é que ganham as eleições. Todos eles fazem crítica à política. Milei, Volodimir Zelensky, Nayib Bukele, Donald Trump. E, curiosamente, a maioria deles, sem nenhum tom pejorativo no que vou dizer, eram, profissionalmente, principalmente na TV, palhaços. O Zelensky era palhaço na Ucrânia.
Que os palhaços não se sintam ofendidos.
Exatamente. Com todo respeito, eu falei. O Milei era palhaço na TV argentina. Conversava com o cachorro dele morto, ia lá com machado para quebrar coisas, fazia essas coisas histriônicas… A espetacularização da política. Agora, para reverter isso, a esquerda precisa aprender a lidar com as redes digitais. Precisa voltar a falar com o povão. A esquerda criou um abismo com o povão. Deixamos de fazer trabalho de base. Eu sempre enfatizo isso. Quando me perguntam o que considero a prioridade número um desse governo, [digo que é] a educação política do povo. Nós sofremos uma deseducação política 24 horas por dia. É toda uma filosofia que o capitalismo dissemina de legitimação das suas aberrações. E as pessoas vão engolindo isso.
E parece que o ápice está na eleição em São Paulo…
Tenho para mim que o Guilherme Boulos vai ganhar. Na minha pequena análise hoje, acho que no segundo turno vai dar Pablo Marçal e Boulos.
É o que muita gente está pensando também. E como se construiu esse rapaz, hein? Saiu do nada…
É mais um histriônico. Mais um que entra para a política falando que é antipolítico.
Betto, apesar de todos esses pesares aí, você é otimista em relação ao Brasil?
Eu tenho um ditado: ‘Guardemos o pessimismo para dias melhores’…
Esse é bom.
O Lula carrega duas tornozeleiras, uma é o Congresso, outra é o Banco Central
É. Sou muito otimista, sabe? Acredito muito no governo Lula, acho que tem dado passos muito significativos. Apesar das duas tornozeleiras eletrônicas que o Lula carrega nas pernas, o Congresso numa e o Banco Central na outra. Felizmente, vai se livrar agora, no fim do ano, da tornozeleira do Banco Central. Porque o [futuro presidente do BC, Gabriel] Galípolo é uma pessoa afinada com a política atual do governo federal.
Mas tem o Congresso, que é excessivamente, não só conservador, mas uma maioria majoritariamente ignorante. A [deputada federal] Luíza Erundina (Psol), que é deputada federal aos 88 anos, está no sexto ou sétimo mandato, uma das figuras mais admiráveis desse país, me disse: ‘Betto, aquilo parece um boteco de faroeste. Os caras andam armados lá dentro e só falam bobagem. Eles não leem nada, não sabem nada, sabe?’ Eu nunca vi um público tão baixo.
E nem querem saber, porque é orgulho da ignorância também.
São as bancadas do B, do Boi, da Bola, da Bíblia, da Bala, as bancadas do B.
Voltando à questão do período da ditadura, ao qual você dedicou vários livros, você acha que existe alguma coisa importante que não foi tocada ainda?
Tem um tema que agora acabo de tocar no último romance que publiquei, ‘Tom Vermelho do Verde’, da editora Rocco. Eu imaginava que o segmento mais atingido pela ditadura teria sido o sindicalismo ou o movimento estudantil. E me surpreendi que o segmento mais atingido e sacrificado foram os indígenas, principalmente na abertura da Transamazônica, que é um corte horizontal no Norte do Brasil, ligando a Paraíba ao Peru, e a BR 174, que é vertical, muito menos conhecida, que liga Manaus à Boa Vista, em Roraima. Só na abertura da 174 foram massacrados mais de dois mil indígenas da nação Waimiri Atroari.
Morreram muito mais indígenas do que brancos ou negros…
Mais do que qualquer outro segmento. Mortes trágicas. Como os nazistas matavam, eles metralhavam aldeias, jogavam gases, agente laranja, napalm sobre as aldeias com crianças, idosos, famílias inteiras. Para abrir a rodovia, porque os indígenas, pouca gente sabe disso, se recusam a mudar de terra onde estão enterrados seus ancestrais. É impensável.
No livro, tu retratas bem, primeiro chegaram os ditos religiosos dos Estados Unidos…
Exatamente. Como os religiosos servem a essa criminalização, abrindo o caminho para os massacres. Em nome de Deus. Isso é que é terrível.
Os jovens têm que apoiar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), o Levante Popular da Juventude…
Do alto dos teus 80 anos, que mensagem deixas para os jovens?
Quero dizer que eles têm que escutar o refrão daquela música ‘Não confie em ninguém com mais de 30 anos’. Por quê? Porque eu não conheço um revolucionário, uma pessoa que tenha ajudado a mudar o mundo para melhor, de Jesus a Spartacus, de Rosa Luxemburgo a Che Guevara, de Mao Tsé Tung a Fidel Castro. Ninguém começou a sua luta depois dos 30 anos. Todo mundo começou na juventude. Eu comecei com 13 anos. É muito importante que você se empenhe nas causas sociais. Abaixo a discriminação racial. Abaixo a homofobia. Abaixo o feminicídio, a misoginia. Vocês precisam, nas suas escolas, criar diretórios estudantis, centros acadêmicos. Vocês precisam se filiar a partidos progressistas. Vocês precisam participar de movimentos populares, apoiar aqueles que já estão na luta, o MST, o MTST, o Levante Popular da Juventude. Enfim, movam-se, mobilizem-se. Vocês têm nas mãos um poder que, se não usarem, será manipulado pelas elites do país e do mundo.
(*) Esta é uma versão reduzida da entrevista de Frei Betto ao podcast De Fato