Com a mesma base das vacinas de mRNA desenvolvidas para a covid-19, substâncias testadas para o tratamento do câncer mostram-se promissoras, inclusive, para tumores desafiadores, como o glioblastoma e o de pâncreas
Usar o próprio corpo como arma contra o câncer. Essa é a proposta da imunoterapia, uma estratégia aprovada para aplicação em humanos na década de 2010 e que, recentemente, passa pelo que especialistas consideram uma revolução. A tecnologia de mRNA, a mesma das vacinas de covid-19, tem demonstrado eficácia em ensaios clínicos, inclusive, para tumores de difícil tratamento, como os de cérebro e pâncreas. Embora ainda sejam necessários mais estudos antes que um grande grupo de pessoas possa se beneficiar, pesquisadores estão esperançosos com as possibilidades oferecidas pela ferramenta.
A todo momento, são produzidas células defeituosas, que podem causar tumores, mas o próprio organismo se livra delas, recrutando componentes do sistema imunológico. Porém, as estruturas cancerosas podem escapar da estratégia, levando ao desenvolvimento da doença. A ideia da imunoterapia é potencializar a resposta natural, amplificando em centenas de vezes a ação de estruturas como os linfócitos T, grupo de “soldados” que induzem a autodestruição celular.
Atualmente, isso pode ser feito de diversas formas: anticorpos monoclonais, inibidores de checkpoint, citocinas e, mais recentemente, terapia por células Car-T e vacinas de mRNA. Todas têm suas vantagens e desvantagens, mas a última, além de desencadear uma resposta robusta, é extremamente segura. Diferentemente de tratamentos baseados em DNA, por exemplo, não há risco de causar mutações genéticas.
Personalização
Uma característica da vacina de mRNA é a personalização, pois é desenvolvida com células do tumor do próprio paciente. “Nenhum câncer é igual ao outro. Aliás, se a gente procura dentro do próprio câncer de uma pessoa, vai ver que diferentes grupos de células, como se fosse uma árvore, em que os ramos se separam do tronco principal”, compara Bernardo Garicochea, oncologista e hematologista da Oncoclínicas. Portanto, em um mesmo tumor, há uma diversidade de células doentes.
“Para reduzir esse problema, tentamos identificar a proteína estranha no tumor. Às vezes isso não é muito difícil, porque a proteína é muito expressa pelo tumor, então a gente consegue produzir um tratamento direto contra ela”, continua Garicochea. Porém, há casos em que a proteína é difícil de se detectar, seja por ser pouco numerosa, seja pela estrutura diferenciada.
A estratégia das vacinas de mRNA consiste em identificar, em laboratório, as proteínas do tumor e dotar o RNA mensageiro de ferramentas para que, dentro das células, ele dê instruções para a sua produção. Assim, o sistema imunológico é capaz de reconhecê-las e combatê-las de forma apropriada.
Desde a descoberta do RNA, da década de 1960, os cientistas sabiam que havia um grande potencial terapêutico nessas moléculas, mas barreiras tecnológicas impediam sua exploração clínica. A principal era fazer com que o mRNA fosse absorvido pelo corpo e rapidamente degradado antes de entregar sua mensagem e ser lido pelas células.
Com a nanotecnologia, foram desenvolvidas gotículas de gordura que envolviam a molécula como uma bolha, facilitando a entrada no núcleo celular. As primeiras vacinas com a tecnologia foram criadas na década de 1990, contra o vírus Ebola. Contudo, a falta de apelo comercial — o microrganismo circula em um número reduzido de países —, as companhias farmacêuticas não investiram nessas ferramentas.
Até que, no fim de 2019, um coronavírus então desconhecido colocou a comunidade científica em peso na busca por um imunizante que ensinasse ao organismo reconhecer a spike, a proteína que permite ao Sars-CoV2 entrar nas células. A plataforma estava pronta, e uma das vantagens das vacinas de mRNA é que são extremamente adaptáveis. No caso da covid, foram usadas para reduzir o risco de infecção. Para o câncer, a tecnologia não é preventiva, mas faz parte do arsenal de tratamento, uma vez que a doença já se instalou.
Glioblastoma
Um exemplo de pesquisa clínica com vacina de mRNA é a desenvolvida por pesquisadores da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, para combater o gliobastoma, o mais agressivo e letal câncer de cérebro. Antes de testes com humanos, a tecnologia foi aplicada em 10 cães que haviam sido diagnosticados com a doença e não tinham outra opção de tratamento. Os animais que receberam a terapia viveram, em média, 139, comparado a uma expectativa de sobrevivência entre 30 e 60 dias.
O resultado abriu caminho para um pequeno ensaio de fase um com quatro adultos. Em um artigo publicado na revista Cell, os cientistas relataram que a vacina personalizada, criada com células retiradas dos próprios pacientes, resultou em uma resposta extremamente rápida: em menos de 48 horas, as poucas células inertes que pareciam não notar a proteína estranha passaram a atacá-la ferozmente.
O próximo passo será um teste com pacientes pediátricos. Os pesquisadores lembram que ainda há muitos desafios pela frente, mas estão entusiasmados com a perspectiva de um tratamento mais eficaz para o glioblastoma. “Estou esperançoso que a vacina seja um novo paradigma de como tratamos os pacientes, uma nova plataforma para modularmos o sistema imunológico”, afirma Elias Sayour, principal autor do estudo.
Fonte; Correio Braziliense