Poder público, principalmente as prefeituras, que têm a obrigação legal de legislar sobre o serviço – entre elas a do Recife – segue fingindo que o problema não existe, enquanto passageiros e motoqueiros estão se ferido e morrendo sobre as motos
Mais uma vez, os números do SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) revelam uma explosão da má condução de motocicletas no trânsito da Região Metropolitana do Recife e, principalmente, da capital pernambucana. E deixam evidente a relação direta dessa tragédia evitável sobre duas rodas com o crescimento dos serviços de aplicativo de transporte remunerado de passageiros com motos – como Uber e 99 Moto – e de delivery.
O crescimento assusta e acende o alerta para que todos – gestores públicos, fiscalização de trânsito, saúde, legisladores e plataformas de transporte (Uber e 99) – atuem com eficiência e rapidez para tentar controlar a situação. Foram 2.464 casos a mais de atendimentos a ocupantes de motos – condutor e passageiro – nos 14 municípios da Região Metropolitana do Recife em 2023. A comparação é com o ano de 2022.
Somente no Recife, foram registrados 1.322 atendimentos a mais no mesmo período. Quando o recorte é comparado com o ano de 2021, os números são ainda mais impressionantes. A RMR registrou, em 2023, 3.048 casos a mais, enquanto a capital pernambucana teve quase dois mil casos a mais (1.879).
Vale destacar que as plataformas criaram o Uber e 99 Moto no fim de 2021 como solução à crise econômica e a perda de motoristas parceiros e passageiros devido à pandemia de covid-19. A primeira cidade foi Aracaju, capital de Sergipe. Em Pernambuco, o serviço de Uber e 99 Moto começou no início de 2022 – o que confirma a relação direta com o crescimento dos números no Grande Recife.
E a tragédia sobre duas motos segue em 2024. Números do SAMU computados nos três primeiros meses deste ano confirmam: já são 2.492 atendimentos de ocupantes de motos na RMR , dos quais 1.469 foram no Recife.
“É, de fato, um fenômeno assustador. Há um crescimento exponencial do número de vítimas das motocicletas e, nós que fazemos o SAMU, que estamos na linha de frente do atendimento pré-hospitalar, estamos assustados, sem dúvida. Estamos falando de quase 10 mil vítimas em 2023 na RMR e quase 6 mil no Recife. É muito assustador e preocupante”, desabafa o médico Leonardo Gomes, diretor-geral do SAMU Metropolitano do Recife.
O médico, com razão, alerta para o fato do novo componente nessa tragédia evitável: o passageiro que passou a utilizar as motocicletas, principalmente devido ao crescimento do serviço de Uber e 99 Moto. “Antes, nós tínhamos um sinistro de trânsito com motos que geralmente envolvia uma pessoa. Agora, são duas pessoas porque existe o passageiro. E nós sabemos que quase metade desses atendimentos terminam em óbitos. De 48% a 49%. Sem falar das graves lesões, fraturas expostas e mutilações, como perda parcial de dedos e mão, por exemplo”, segue alertando.
MAIS DE 25 MIL VÍTIMAS ATENDIDAS EM SINISTROS DE TRÂNSITO COM MOTOS NO GRANDE RECIFE
Entre 2021 e março de 2024, a Região Metropolitana do Recife teve nada menos do que 25.738 atendimentos de vítimas de motos pelo SAMU. Enquanto a capital teve 14.636.
O Recife é a cidade que lidera o ranking negativo do SAMU – e, mesmo assim, a Prefeitura do Recife segue sem reagir ao crescimento do serviço de Uber e 99 Moto, sob o cômodo argumento de que está impedida de fazer qualquer fiscalização por uma decisão judicial. Decisão de 2020 e que, vale destacar, citava apenas o transporte de passageiros por aplicativo com carros.
JABOATÃO DOS GUARARAPES E OLINDA COM ALTOS ÍNDICES
Depois da capital pernambucana, as cidades com os maiores índices de atendimentos a feridos em quedas e colisões com motos na Região Metropolitana são Jaboatão dos Guararapes e Olinda. Enquanto o Recife já acumula 14.636 casos entre 2021 e março de 2024, Jaboatão tem 2.749, e Olinda, 2.023.
Dos quase 26 mil casos registrados pelo SAMU na RMR desde 2021, 19.200 foram entre 2022 e 2024 – exatamente o período de entrada do Uber e 99 Moto no Grande Recife.
Quando o recorte é feito apenas sobre a capital pernambucana, o mesmo cenário preocupante se destaca. Dos 14.636 atendimentos, 11.059 foram registrados entre 2022 e 2024.
CONFIRA OS NÚMEROS DO SAMU
Ano – RMR – Recife
2021 – 6.538 – 3.577
2022 – 7.122 – 4.134
2023 – 9.586 – 5.456
2024 – 2.492 – 1.469
Total: 25.738 – 14.636
(*) Em 2024, os dados são referentes até o mês de março.
Recorte da RMR:
De 2021 para 2023 = 3.048
De 2022 para 2023 = 2.464
3 primeiros meses de 2021 = 1.613
3 primeiros meses de 2022 = 1.499
3 primeiros meses de 2023 = 2.098
Recorte do Recife:
De 2021 para 2023 = 1.879
De 2022 para 2023 = 1.322
3 primeiros meses de 2021 = 835
3 primeiros meses de 2022 = 850
3 primeiros meses de 2023 = 1.160
Cidades com mais atendimentos de vítimas das motos na RMR:
Cidade – 2021 – 2022 – 2023 – 2024
Recife – 3.577 – 4.134 – 5.456 – 1.469 (*)
Total: 14.636
Jaboatão dos Guararapes – 793 – 680 – 1.003 – 273 (*)
Total: 2.749
Olinda – 562 – 492 – 778 – 191 (*)
Total: 2.023
(*) Em 2024, os dados são referentes até o mês de março.
SITUAÇÃO CRÍTICA FAZ BOMBEIROS EMITIR ALERTA SOBRE MOTOS
O aumento dos sinistros de trânsito envolvendo motocicletas fez com que o Corpo de Bombeiros Militar de Pernambuco (CBMPE) fizesse, no fim de abril, um alerta público à sociedade sobre os perigos que envolvem o uso das motos como transporte de pessoas.
O crescimento do atendimento às ocorrências foi verificado em 2023 em todo o Estado, mas principalmente na Região Metropolitana do Recife. Foram registrados 3.831 sinistros de trânsito com motos atendidos pela Corporação, o que corresponde a 77% das colisões registradas em todo o ano – um total de 4.300 registros. Nesses casos, as vítimas eram condutores e passageiros das motocicletas.
Os Bombeiros também registraram um aumento em relação aos atropelamentos envolvendo motos, o que evidencia o crescimento da frota no Estado: foram 408 atropelamentos, o que representou quase a metade (41,5%) de todos os atropelamentos atendidos em 2023.
No alerta, a Corporação define os números como alarmantes. E destaca a importância da conscientização e prevenção para evitar os sinistros de trânsito. As ocorrências com motocicletas respondem por até 60% dos registros no trânsito atendidos pelos Bombeiros.
MOTOS SÃO A PRINCIPAL CAUSA DOS TRAUMAS E MUTILAÇÕES NA AACD RECIFE
Não são apenas o SAMU e os Bombeiros que têm dados alarmantes sobre o impacto das motos no trânsito. Os danos provocados pelo uso inseguro e imprudente das motocicletas se confirmam, também, na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) do Recife.
Os ferimentos causados por colisões e quedas com motos estão entre as principais causas de mutilações em pacientes atendidos pela entidade, referência nacional na assistência médico-terapêutica de excelência em Ortopedia e Reabilitação.
Um estudo da AACD mostrou que as vítimas das motos respondem por 53,2% dos traumas sofridos pelas pessoas que passam pela unidade. E em 96% das situações envolvendo motos, houve colisão e era o paciente quem pilotava a motocicleta. Os passageiros, na garupa, representam 8% dos que buscam reabilitação na AACD Recife.
O estudo também confirma a intensidade do tratamento dessas vítimas das motos, que em sua grande maioria – 83,6% – precisa usar próteses por mais de sete horas diárias. A boa notícia é que, mais da metade desses pacientes (58,6%) consegue ter autonomia de descolamento com as próteses. Em segundo lugar entre as vítimas dos traumas estão os atropelamentos, com 17%.
IMPRUDÊNCIA É O PRINCIPAL FATOR
O médico ortopedista Julio Lima, que trabalha com reabilitação na AACD Recife e com ortopedia pediátrica no Hospital da Restauração – a maior emergência de Pernambuco e uma das maiores do Nordeste – confirma o que o levantamento identificou. O médico, inclusive, foi o coordenador do levantamento.
“O impacto é total e crescente. O motoqueiro está completamente desprotegido, é como o pedestre, com a diferença da velocidade, o que é ainda mais grave. Quase 100% (96%) dessas amputações por motos não foram provocadas por uma queda, um buraco ou uma fatalidade. Foram colisões. E sabemos que quando uma colisão de trânsito acontece é porque alguém foi imprudente”, constata o médico
Uma das vítimas das motos é o operador de caixa Edson Leandro Figueiredo, 38 anos. Em 2012, após sair de Recife e ir em direção à cidade em que morava, em uma curva na rodovia, um micro-ônibus estava com farol alto, o que fez o condutor perder o controle da moto que pilotava e colidir de lado com o veículo.
Na colisão, ele perdeu a perna esquerda do joelho para baixo. Depois de alguns meses, passou a ser atendido na AACD e foi reabilitado. Agora, diz ter aprendido muito com tudo que enfrentou. “Antes, eu era imprudente. Entrava em qualquer corredor, em qualquer brecha. Tinha muita pressa e me rendia ao corre-corre da vida. Mas hoje eu mudei. Tive que passar pelo que passei para aprender”, reconhece.
Fonte; artigo reproduzido do UOL