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O Teorema de Fux: Quando Quatrocentas Certezas Não Fazem Uma Jurisprudência

Ou sobre como descobrir, no quadringentésimo primeiro julgamento, que o Supremo nunca deveria ter julgado nenhum.

Por Percival Henriques*

Philip K. Dick, esse visionário paranoico que antecipou nossos dilemas antes mesmo de termos os instrumentos para criá-los, cunhou uma definição de realidade que hoje ressoa com perturbadora atualidade: “A realidade é aquilo que, mesmo quando você deixa de acreditar nela, não desaparece.”

Que deliciosa ironia descobrir que, em pleno século XXI, armados com toda a parafernália tecnológica que nos prometia a democratização absoluta do conhecimento, nos encontramos precisamente no ponto oposto. Navegamos às cegas em um oceano de narrativas conflitantes, onde a própria noção de realidade compartilhada parece ter-se dissolvido como açúcar em água quente.

O Espetáculo da Incoerência

O ministro Luiz Fux ofereceu-nos, em seu voto desta quarta-feira sobre os eventos de 8 de janeiro, uma aula magistral sobre a plasticidade da convicção jurídica.

Em setembro de 2023, ao julgar Aécio Pereira pelos mesmos atos, Fux declarou que Alexandre de Moraes “não deixou dúvida sobre a autoria e a materialidade” dos fatos. Votou pela condenação, sem ressalvas, sem questionamentos processuais. Agora, como num passe de mágica, descobre a existência de um “tsunami de dados” impossível de processar. Descobre, sobretudo, uma incompetência absoluta do Supremo para julgar esses casos.

A metamorfose impressiona pela naturalidade. Fux acompanhou mais de quatrocentas condenações do 8 de janeiro; processo após processo, turma após turma, nunca questionou a competência da Corte. Quando chega a vez de Bolsonaro, súbita revelação: o STF jamais deveria ter julgado qualquer desses casos.

Seria cômico se não fosse trágico. Seria teatro se não fosse realidade. Ou seria?

A Pergunta Fundamental

Por que tamanha inconsistência quando a verdade de fato existe?

Os eventos de 8 de janeiro não habitam o terreno da abstração filosófica. Aconteceram, foram filmados, fotografados, transmitidos ao vivo: vidros quebrados, mesas destruídas, paredes pichadas. Tudo documentado em alta definição – setenta terabytes de evidências, como o próprio Fux admitiu.

Eis o paradoxo supremo de nossa era: quanto mais evidências acumulamos, menos parecem importar. A verdade não desapareceu, foi soterrada sob camadas de interpretação, reinterpretação e, quando conveniente, completa reimaginação.

O Teatro das Conveniências

Hannah Arendt nos ensinou que a mentira política transcende a questão moral. É ontológica, corrói a possibilidade da convivência em um mundo comum. Mas Arendt viveu numa época em que ainda se fingia respeitar a coerência. Hoje assistimos a algo mais perturbador: a normalização da contradição descarada.

Fux não se constrange em contradizer seu próprio histórico. Sabe que, em nosso ecossistema informacional fragmentado, cada público receberá apenas a versão que confirma suas convicções. Para uns, ele surge como o herói que finalmente desafiou Moraes e para outros, o oportunista que mudou de lado quando politicamente conveniente.

Ambas as narrativas coexistem, impermeáveis uma à outra. A verdade? Tornou-se apenas um detalhe inconveniente.

O Custo da Flexibilidade Moral

A incoerência de Fux transcende a mera inconsistência acadêmica. Quando um ministro do Supremo abandona suas convicções jurídicas com tal desenvoltura, não trai apenas sua biografia judicial, mina a própria ideia de que existem princípios acima da conveniência política.

Se o mesmo crime, com as mesmas evidências, sob as mesmas leis, pode ser julgado de forma oposta conforme o réu, então o direito deixa de ser direito, torna-se exercício nu de poder; a toga vira fantasia e o martelo, acessório cênico.

O Paradoxo da Abundância

“Tsunami de dados”, lamenta Fux sobre os setenta terabytes de informação. Curioso argumento de quem nunca reclamou do volume probatório nos casos anteriores. Mais curioso quando consideramos que o excesso de evidências deveria facilitar, não dificultar, a busca pela verdade.

Mas aqui reside o segredo de nossa era: o problema nunca foi a escassez de informação. Quando tudo pode ser reinterpretado, a própria abundância de dados torna-se álibi para a paralisia seletiva. Há tantas provas que não consigo ver nenhuma. Há tantos fatos que prefiro inventar os meus.

A Contaminação Institucional

A entropia dos fatos não é fenômeno exclusivo das redes sociais. Contaminou até as instituições que deveriam ser seu antídoto. Quando o Supremo torna-se palco desse teatro de contradições, a desordem informacional completa seu ciclo corrosivo.

Não disputamos mais interpretações sobre fatos complexos, negamos a própria necessidade de coerência, de respeito ao precedente, à palavra empenhada em votos anteriores. É a institucionalização do “vale tudo” hermenêutico.

Uma Conclusão Necessariamente Sóbria

A batalha contra a entropia dos fatos revela-se mais árdua do que imaginávamos. Fact-checking, educação midiática, regulação de plataformas tornam-se exercícios fúteis quando as próprias instituições guardiãs da verdade jurídica sucumbem ao relativismo oportunista.

O caso Fux não é anomalia. É sintoma de um tempo em que a verdade tornou-se não apenas maleável, mas descartável; em que a coerência é vista como rigidez desnecessária e a memória é tratada como capricho opcional.

Philip K. Dick estava certo. A realidade é aquilo que não desaparece quando deixamos de acreditar nela. Os eventos de 8 de janeiro aconteceram, as condenações existem, os votos estão registrados.

Mas, em tempos de entropia institucionalizada, até os guardiões da verdade jurídica parecem ter decidido que podem habitar realidades diferentes a cada julgamento.

Navegamos, assim, não mais em busca da verdade, soterrada sob montanhas de dados e contradições, mas tentando apenas manter algum senso de orientação. Num mundo onde até as bússolas decidiram que o norte é questão de opinião, o desafio não é mais encontrar a verdade; é lembrar que ela ainda importa.

*Percival Henriques é Especialista em Justiça Constitucional e Tutela Jurisdicional dos Direitos Fundamentais, pela Universidade de Pisa – Itália; pesquisador pela Rede de pesquisa: Teoria Critica do Direito e De(s)colonialidade digital; autor de livros como “Pássaros Voam em Bando – A história da Internet do século XVII ao século XXI” e “Direito à Realidade – Por um Constitucionalismo Digital no Brasil”; Presidente da Associação Nacional para Inclusão Digital – ANID.


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