Servidores Federais Procurados pela Justiça Seguem sem Prisão

Levantamento do g1 revela falhas na gestão de dados ao identificar nove servidores federais entre procurados com mandados de prisão em aberto.

Um levantamento exclusivo do g1 expôs uma falha sistêmica no Brasil: pelo menos nove servidores públicos federais estão entre os 149 mil procurados pela Justiça com mandados de prisão em aberto, segundo o Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP), mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Apesar de terem endereço fixo e vínculo empregatício conhecido, esses indivíduos permanecem livres, evidenciando problemas de integração e gestão de informações entre os poderes Executivo e Judiciário.

Quem São os Procurados

O cruzamento de dados entre o BNMP e a base de servidores federais ativos revelou casos graves:

  • Vigilante da UFMT: Carlos Jose de Figueiredo, condenado a 12 anos por estupro de vulnerável, é procurado desde novembro de 2024. Ele segue na ativa na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), que alega não poder agir sem decisão judicial definitiva.
  • Auxiliar em Roraima: Ivanildo Costa de Souza, auxiliar operacional desde 1984 na Secretaria de Gestão Estratégica de Roraima, alvo de prisão preventiva desde setembro de 2024 por suspeita de estupro de vulnerável. Ele está afastado, sob investigação administrativa.
  • Agente do ICMBio: Orleans Silva Morais, contratado temporário no Parque Nacional do Cabo Orange (AP), condenado a um mês em regime semiaberto por ameaçar a ex-companheira. O mandado é de maio de 2024.
  • Assistente do IFRO: Alecsandro de Goes Guedes, do Instituto Federal de Rondônia, condenado em novembro de 2024 a sete meses em semiaberto por embriaguez ao volante.
  • Agente de Portaria no Amapá: Francineive Caldas da Silva, preso em 12 de março após o g1 questionar a Polícia Civil. Era procurado desde 2019 por furto qualificado.
  • Outros Quatro Casos: Um professor substituto, um médico, um agente especial e um analista enfrentam mandados por débito de pensão alimentícia, uma prisão civil que cessa com o pagamento da dívida.

Metodologia da Investigação

O g1 analisou 149.341 dos 326.345 mandados do BNMP — quase metade do total —, cruzando CPFs com a base de 762.657 servidores federais ativos. Após cinco meses de trabalho, confirmou nove casos com visitas presenciais e consultas adicionais, já que o CNJ restringe extrações completas de dados. Os 180 mil mandados restantes não foram detalhados pelo conselho, que alegou limitações técnicas.

Especialistas Criticam “Amadorismo”

Rafael Alcadipani, da FGV e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta um “amadorismo” na gestão pública. “Estamos na era da IA, mas o Estado opera no analógico. Não é aceitável que procurados trabalhem em repartições públicas”, diz. Rodolfo Laterza, da Adepol, reforça: “A falta de integração entre Judiciário e Executivo é gritante. Esses servidores têm endereço fixo e poderiam ser presos rapidamente.”

O CNJ informou que o BNMP é público e acessível ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) via acordo, cabendo ao MJSP repassar os dados às polícias. Após questionamentos do g1, o ministério afirmou que distribui as informações pelo Sinesp Infoseg, mas não fiscaliza a execução das prisões, responsabilidade dos estados.

O Que Diz a Lei

Segundo Cristina Braga, especialista em direito administrativo, a perda do cargo não é automática. Crimes como estupro ou violência de gênero podem levar à expulsão direta, mas, em geral, exige-se decisão judicial explícita ou pena superior a um ano (abuso de poder) ou quatro anos (outros casos). Órgãos públicos podem abrir processos disciplinares, mas muitos aguardam o trânsito em julgado. Para devedores de pensão, o desconto pode ser feito na folha, mas a prisão civil persiste até o pagamento.

Reações e Consequências

  • UFMT: Repudia a violência, mas diz que só age com ordem judicial.
  • Roraima: Iniciou processo disciplinar contra Souza.
  • ICMBio: O advogado de Morais alega desconhecer o mandado.
  • IFRO: Guedes não foi encontrado no trabalho; o mandado segue ativo.
  • Amapá: A prisão de Silva só ocorreu após intervenção do g1, evidenciando inércia policial.

A UFMT e o Tribunal de Justiça de Mato Grosso citaram sigilo processual. O MJSP, inicialmente silencioso, limitou-se a confirmar o repasse de dados. O CNJ reiterou que cabe aos tribunais atualizar o BNMP e às polícias cumprir os mandados.

Um Sistema em Xeque

O caso expõe a desconexão entre tecnologia disponível e sua aplicação. Enquanto o BNMP é um avanço, a falta de comunicação efetiva entre Judiciário, Executivo e órgãos empregadores permite que procurados sigam na folha pública. Para Alcadipani, “o descompasso entre o que a tecnologia oferece e o que o Estado entrega é gritante”. A prisão de Silva após pressão do g1 sugere que a ação só ocorre sob escrutínio — um sinal de que o problema é mais profundo que a mera identificação dos procurados.


Texto baseado em reportagem do g1, com colaboração de múltiplas fontes regionais, revisado pela nossa redação.

Compartilhar: