O Nó Górdio Energético: Como a Burocracia Impede o Brasil de Liderar a Revolução Verde dos Data Centers
Por Percival Henriques
Há algo de profundamente melancólico em assistir aerogeradores girando no vazio.
Fui vê-los outro dia, nos campos de Santa Luzia. Torres brancas, elegantes, futuristas, cortando o ar da caatinga com a precisão de bailarinas mecânicas. Produzindo energia limpa que ninguém usa. Girando, girando, girando. Para nada.
E de repente me veio à memória Augusto dos Anjos, nosso poeta paraibano que enxergava tragédias cósmicas no cotidiano. Ele que escreveu, como se previsse este momento:
“Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos
O choro da Energia abandonada!”
O choro da Energia abandonada.
Augusto não conheceu aerogeradores, morreu em 1914, mas profetizou nosso drama atual com precisão assombrosa. Cada torre eólica em Santa Luzia é a materialização de seu lamento. É literalmente “a dor da Força desaproveitada”.
Oitenta por cento de ociosidade.
O Cantochão dos Dínamos Profundos
Deixe esse número pousar em sua consciência. Oitenta por cento. Não é erro de digitação, não é hipérbole jornalística. É a medida exata de nosso desperdício.
Augusto continua:
“O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
Jazem ainda na estática do Nada!”
Nossos aerogeradores poderiam mover milhões de servidores, processar trilhões de dados, sustentar a revolução da inteligência artificial. Em vez disso, jazem na estática burocrática, produzindo energia que se dissolve no ar como lágrimas na chuva.
E sabe o que é mais cruel? O mundo precisa exatamente disso que jogamos fora.
A Sede ao Lado da Fonte
Data centers pelo planeta vasculham o globo em busca de energia limpa. Google, Microsoft, Amazon assumiram compromissos públicos de carbono zero. Seus acionistas cobram. Seus clientes exigem. E nós aqui, com energia verde apodrecendo no campo, assistimos essa procissão passar.
É Kafka encontrando Machado de Assis no sertão paraibano. Com Augusto dos Anjos servindo o café amargo da ironia.
O problema, descobri após meses investigando essa aberração, não é técnico. É jurídico. Nossa legislação elétrica – desenhada para um mundo anterior ao iPhone, anterior ao ChatGPT, anterior a tudo que importa hoje – simplesmente não prevê que alguém possa ligar o ponto A ao ponto B com um cabo próprio.
Para conectar um parque eólico a um data center, mesmo que estejam a poucos quilômetros de distância, é preciso entrar na fila dos leilões de transmissão. Esperar anos. Pagar pedágios. Seguir rituais burocráticos que fariam Franz Kafka revisar seus manuscritos por excesso de realismo.
O Precedente Esquecido
Mas aqui está o segredo que poucos conhecem: já resolvemos esse problema antes.
Nas telecomunicações.
Quando uma empresa precisa de uma rede própria de comunicação – não para vender serviços, apenas para uso interno –, a Anatel criou uma figura jurídica elegante: o Serviço Limitado Privado. Simples assim. Sem leilão, sem fila, sem drama.
Por que diabos não fazemos o mesmo com energia?
A pergunta paira no ar como os elétrons desperdiçados de Santa Luzia.
A Transcendência que Não se Realiza
“É o soluço da forma ainda imprecisa…
Da transcendência que se não realiza….
Da luz que não chegou a ser lampejo…”
Augusto dos Anjos poderia estar descrevendo o potencial tecnológico da Paraíba em 2024. Somos a forma ainda imprecisa de um hub tecnológico, a transcendência digital que não se realiza, a luz de fibra óptica OPGW da CHESF que conecta nossos campos eólicos aos cabos submarinos de Fortaleza mas não consegue acender os data centers que poderiam transformar nossa economia.
A solução não é complexa. É uma alteração legislativa de duas páginas na Lei 9.074/1995. Criar a figura da “Linha de Transmissão de Uso Restrito”. Permitir que data centers construam, com recursos próprios, conexões diretas com fontes renováveis.
Mas aqui preciso fazer uma pausa.
Uma pausa para falar de justiça.
Um Marco Para Todos
Quando um data center se instala em Campina Grande, em Patos, em Sousa, não pode ser como aquelas montadoras do século passado. Chegando com promessas, sugando incentivos, deixando migalhas.
Os municípios que sediarão essa revolução precisam ser sócios dela, não servos.
Imagino um “ICMS Verde Digital”. O município que abriga o data center retém 60% do imposto. Vinculado – isso é crucial – a investimentos em educação tecnológica local. Não é caridade. É círculo virtuoso: data center gera receita, receita forma pessoas, pessoas atraem mais investimento.
É desenvolvimento de verdade, não sua caricatura.
O Subconsciente Formidando
“E é em suma, o subconsciente aí formidando
Da Natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!”
O verso final de Augusto é devastador em sua precisão profética. Nossa natureza tecnológica parou, chorando, no rudimentarismo do desejo de desenvolvimento. Temos tudo – energia, localização, talento, até o presidente da Câmara dos Deputados e o relator do PL sobre data centers. Hugo Motta e Aguinaldo Ribeiro, ambos paraibanos, têm nas mãos o poder de transformar o lamento em realização.
Mas o tempo não espera.
Singapura, sem um único aerogerador, virou hub de data centers através de regulação inteligente. Irlanda abriga os servidores do Google. O Paraguai desenha estratégia para atrair fazendas de criptomoedas.
E nós? Presos no “rudimentarismo do Desejo”, como profetizou nosso poeta.
Uma Imagem Final
Volto à imagem dos aerogeradores de Santa Luzia.
Girando no vazio.
São como relógios marcando um tempo que não usamos. Cada rotação, uma oportunidade perdida. Cada dia de inação, um futuro negado. Não apenas à Paraíba – Bahia, Rio Grande do Norte, Ceará sangram a mesma hemorragia silenciosa de energia desperdiçada.
O Brasil tem tudo para liderar a revolução verde dos data centers. Tudo, exceto a coragem de mudar dois parágrafos de uma lei anacrônica.
Augusto dos Anjos morreu aos 30 anos, em 1914, sem ver a Paraíba industrializada que sonhava. Cento e dez anos depois, continuamos especialistas em desperdiçar futuros. Só que agora o desperdício tem métrica precisa: 80% de energia eólica girando para o nada.
A resposta está em Brasília. Nas mãos de Hugo Motta e Aguinaldo Ribeiro. Na caneta que pode transformar o lamento em realização ou perpetuar o choro da Energia abandonada.
Escolham logo. O vento não espera. O mundo não espera.
E os aerogeradores, impassíveis como os versos de Augusto, continuam girando.
Para nada.
Chorando, em sons subterrâneos, a dor da Força desaproveitada.
Percival Henriques é físico, especialista em governança digital e escreve regularmente para o Movimento PB sobre tecnologia, política e desenvolvimento regional.
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