Adaptação do texto de Isis Paris Maia, articulista do Outras Palavras
A Dominação Digital e a Teoria Marxista da Dependência
Enquanto o ministro Alexandre de Moraes alerta, em suas aulas na USP, sobre os riscos das Big Techs à democracia, é urgente olharmos para além da superfície: o que está em jogo não é apenas a privacidade ou a desinformação, mas a submissão estrutural do Brasil a um novo colonialismo digital. Sob a lógica da teoria marxista da dependência, somos mais uma vez periferia: fornecedores de dados brutos e consumidores passivos de tecnologias que ampliam o poder do capital estrangeiro.
Não é exagero. As FAANGs (Facebook, Amazon, Apple, Netflix, Google) e suas congêneres operam aqui como modernas Companhias das Índias Ocidentais: extraem riqueza — agora sob a forma de dados, atenção e padrões de consumo —, enquanto nós importamos serviços digitais caros e dependentes. Sete das dez maiores empresas do mundo são Big Techs estadunidenses; nenhuma é latino-americana. A conta é clara: enquanto o Norte inova, o Sul exporta matéria-prima digital e paga pelo privilégio de ser espionado.
O Grande Firewall Chinês: Uma Lição de Soberania
A China, alvo de críticas ocidentais por seu “autoritarismo digital”, expõe a hipocrisia do livre mercado. O chamado Great Firewall não foi um mero ato de censura, mas uma estratégia de ruptura com a dependência tecnológica. Enquanto o Ocidente zombava, Pequim construía um ecossistema próprio: BATX (Baidu, Alibaba, Tencent, Xiaomi), redes 5G autônomas e leis rigorosas de proteção de dados.
Resultado? Hoje, a China não só domina a produção de semicondutores e baterias, como exporta seu modelo via Rota da Seda Digital, integrando países do Sul Global a suas plataformas. Enquanto isso, o Brasil, refém do WhatsApp e do Google, sequer consegue obrigar o X (ex-Twitter) a nomear um representante legal em solo nacional. A lição é óbvia: soberania tecnológica exige protecionismo estratégico, algo que a teoria da dependência já anunciava nos anos 1960.
Big Techs e a Reprimarização da Economia Brasileira
O economista Márcio Pochmann não erra ao apontar: vivemos uma reprimarização da economia, onde dados substituem o minério de ferro como commodity de exportação. Plataformas como Meta e TikTok monetizam nossa cultura, nossos desejos e até nossa revolta, enquanto repatriam lucros e evitam impostos. O caso da Cambridge Analytica — que usou dados brasileiros para alimentar o bolsonarismo — é só a ponta do iceberg.
A dependência digital reproduz a velha divisão internacional do trabalho: nós colhemos cacau; eles vendem chocolate. Enquanto a Huawei investe 20% de seu faturamento em pesquisa, o Brasil gasta 1,2% do PIB em ciência — e ainda assim, parte desse montante é drenada para pagar licenças de softwares estrangeiros.
O Plano de IA Brasileiro: Esperança ou Ilusão?
O Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, que promete R$ 23 bilhões até 2028, poderia ser um divisor de águas. Mas, sem romper com a lógica dependente, corre o risco de ser mais um projeto subalterno. De que adianta atualizar o supercomputador Santos Dumont se continuarmos usando algoritmos treinados em inglês, incapazes de entender nossa diversidade linguística e cultural?
A China nos ensina que inovação exige controle estatal sobre infraestrutura crítica. Enquanto aqui discutimos privatizações do 5G, os chineses já planejam redes 6G públicas. Enquanto nossa LGPD é flexível com as Big Techs, a legislação chinesa obriga empresas a armazenar dados localmente e compartilhar códigos-fonte com o governo.
Por Um Projeto Nacional de Libertação Digital
A teoria marxista da dependência nos alerta: não há desenvolvimento autônomo sem ruptura com o imperialismo. Se queremos evitar um futuro onde algoritmos de Silicon Valley definem nossa política, precisamos:
- Estatizar infraestruturas digitais, como redes 5G e data centers.
- Criar um sistema público de inovação, com universidades e empresas estatais liderando o desenvolvimento de IA em português.
- Regulamentar com rigor, taxando lucros das Big Techs e exigindo transferência de tecnologia.
- Fortalecer alianças Sul-Sul, integrando-se a iniciativas como a Rota da Seda Digital.
A alternativa é seguir como quintal digital do Norte, onde até nossa indignação vira mercadoria. Como dizia Theotonio dos Santos, teórico da dependência: “O subdesenvolvimento não é uma etapa, mas um produto do capitalismo”. Na era digital, ou rompemos as correntes, ou seremos eternos avatares de um império algorítmico.
Isis Paris Maia é socióloga e pesquisadora de geopolítica da tecnologia. Artigo publicado originalmente no Portal Outras Palavras, em 25 de fevereiro de 2025.