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Editora Springer publica livro com dezenas de citações falsas e expõe crise no sistema editorial científico

O mundo acadêmico foi abalado na última semana por uma descoberta que expõe falhas graves no sistema de revisão por pares de uma das editoras científicas mais respeitadas do mundo. A Springer Nature, gigante editorial com mais de 2.900 periódicos e 300.000 livros em seu catálogo, publicou em abril de 2025 um livro sobre inteligência artificial repleto de citações fabricadas e referências inexistentes.

A obra “Mastering Machine Learning: From Basics to Advanced”, de autoria de Govindakumar Madhavan, custava US$ 169 na versão digital e US$ 219 em capa dura. A ironia é palpável: um livro sobre aprendizado de máquina que comete exatamente os erros mais comuns de sistemas de IA – a fabricação de citações e referências que simplesmente não existem.

A denúncia foi revelada pelo portal Retraction Watch, referência mundial no monitoramento da integridade científica. Baseando-se em uma dica de leitor, os editores verificaram 18 das 46 citações presentes no livro e descobriram que dois terços delas eram falsas ou continham erros substanciais. Três pesquisadores contactados confirmaram que obras supostamente de sua autoria eram completamente inventadas ou incorretamente citadas.

Indícios claros de uso de inteligência artificial

Embora o livro não mencione explicitamente o uso de IA em sua elaboração, evidências textuais sugerem fortemente que foi majoritariamente escrito por algoritmos. O uso recorrente de travessões e pontos e vírgulas, padrões típicos de textos gerados por modelos como ChatGPT, levantou suspeitas entre especialistas.

O caso ganhou ainda mais repercussão quando se descobriu que pesquisadores renomados tiveram trabalhos fictícios atribuídos a eles. Outros acadêmicos contactados pelo Retraction Watch relataram situações similares, confirmando que trabalhos supostamente de sua autoria eram inexistentes.

A resposta da Springer Nature foi protocolar e evasiva. A editora limitou-se a afirmar que o caso estava sendo investigado, sem fornecer explicações sobre como um livro com tantas irregularidades passou pelo processo editorial.

Duplo padrão no sistema editorial

O episódio expõe um problema estrutural no sistema de publicação científica: o duplo padrão aplicado a pesquisadores de diferentes posições na hierarquia acadêmica. Enquanto estudantes e pesquisadores iniciantes têm cada vírgula escrutinizada, autores estabelecidos parecem gozar de uma confiança que os blinda contra verificações rigorosas.

Essa discrepância revela que o problema não é necessariamente o uso de IA, mas a forma como ela é incorporada a um sistema já assimétrico. A mesma tecnologia que poderia ser rejeitada em um trabalho de graduação torna-se aceitável quando chega embalada em prestígio institucional e potencial lucrativo.

A situação é particularmente preocupante quando consideramos que editoras como a Springer operam sob uma lógica produtivista que privilegia volume e velocidade sobre qualidade e rigor. O mercado editorial científico, há décadas, recompensa escala e prestígio em detrimento da verificação criteriosa.

Crise no sistema de revisão por pares

O caso da Springer evidencia que mesmo o tradicional sistema de revisão por pares não está funcionando adequadamente. Quando até mesmo editoras prestigiadas falham em detectar dezenas de citações falsas, questiona-se a eficácia de todo o processo editorial.

Essa falha ocorre justamente quando a pós-graduação brasileira e mundial enfrenta pressões crescentes por produtividade. Programas exigem que estudantes publiquem em periódicos qualificados ainda durante o curso, transformando-os em “operários do fator de impacto” sem garantir que o sistema editorial cumpra sua parte do acordo.

A ironia é que críticas ao sistema de preprints – que acelera a divulgação científica sem intermediação comercial – soam como proteção de mercado quando nem mesmo as editoras mais respeitadas conseguem garantir a qualidade que prometem.

Reflexões sobre o futuro da publicação científica

O episódio da Springer levanta questões fundamentais sobre o futuro da comunicação científica. Se o risco não está na inteligência artificial em si, mas na “estupidez institucionalizada” que permite que erros sejam lucrativos, então o problema é sistêmico.

A situação sugere que o modelo atual de publicação científica precisa ser repensado urgentemente. Quando o conhecimento se torna produto, pesquisadores se tornam operários precarizados, e a verdade vira mercadoria sujeita apenas às leis do lucro.

O caso serve como um chamado para que a comunidade científica reavalie suas práticas e prioridades. É preciso escolher entre um sistema que premia prestígio e pune esforço, ou reivindicar uma nova forma de produzir, revisar e publicar conhecimento – uma forma onde a inteligência, humana ou artificial, sirva ao pensamento e não ao algoritmo do lucro.

A publicação de um livro com dezenas de citações falsas por uma editora do calibre da Springer não é apenas um acidente editorial: é um sintoma de um sistema que perdeu de vista sua missão fundamental de preservar e disseminar conhecimento confiável.


Adaptado de The Conversation, via Veja

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