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O Universo como uma renda de bilros: quando a física quântica revela que estamos todos entrelaçados

O Universo como uma renda de bilros: quando a física quântica revela que estamos todos entrelaçados

Por: Percival Henriques

Há uma velha lenda nordestina que diz que o jabuti carrega no casco os segredos do mundo. Talvez seja verdade. Mas os físicos poloneses Paweł Błasiak e Marcin Markiewicz acabam de descobrir algo ainda mais espantoso: cada elétron do seu corpo está inexoravelmente conectado a cada elétron das galáxias mais distantes do cosmos. Não é metáfora. É física.

O artigo “Identical particles as a genuine non-local resource”, publicado em novembro de 2025 no prestigiado periódico npj Quantum Information, demonstra que a não‑localidade, aquilo que Einstein chamava, com seu característico desdém, de “ação fantasmagórica à distância”, não é uma anomalia que precisamos criar artificialmente em laboratórios sofisticados. Ela está tecida na própria estrutura do real.

O paradoxo da indistinguibilidade

A mecânica quântica estabelece um princípio que, à primeira vista, parece uma mera curiosidade técnica: partículas do mesmo tipo são absolutamente indistinguíveis. Não se trata apenas de dizer que dois elétrons são “muito parecidos”, como dois grãos de areia que, sob o microscópio, revelam diferenças sutis. Não. Dois elétrons são ontologicamente idênticos. Não existe, em nenhum sentido físico concebível, “este” elétron versus “aquele” elétron.

Dr. Błasiak, do Instituto de Física Nuclear da Academia Polonesa de Ciências em Cracóvia, explica com precisão cirúrgica: “A mecânica quântica é clara: partículas idênticas são indistinguíveis por sua própria natureza. Na prática, não medimos ‘esta partícula em particular’, mas ‘alguma’ partícula em determinada localização.”

Essa indistinguibilidade não é uma limitação do nosso conhecimento ou dos nossos instrumentos. É uma propriedade fundamental da realidade. E é dela que emerge algo extraordinário.

Da identidade à conexão cósmica

Aqui está o salto conceitual que os físicos poloneses formalizaram: se partículas idênticas são indistinguíveis, então seus estados quânticos devem ser descritos por funções de onda simetrizadas (para bósons) ou anti‑simetrizadas (para férmions). Essas funções de onda são, matematicamente, entrelaçadas.

Mas aqui mora o demônio nos detalhes: a teoria quântica de segunda quantização tradicionalmente mascara esse entrelaçamento ao trabalhar com “modos” em vez de partículas individuais. A pergunta que Błasiak e Markiewicz enfrentaram foi: seria possível, mesmo assim, usar esses estados como recurso em experimentos do tipo Bell? Seria possível observar a não‑localidade que a indistinguibilidade implica?

A resposta é sim, e de forma quase universal.

O estudo demonstra que todos os estados fermiônicos e quase todos os estados bosônicos podem exibir não‑localidade em configurações ópticas lineares passivas, componentes considerados puramente clássicos do experimento. A única exceção é uma classe restrita de estados bosônicos “redutíveis a um único modo”, que podem ser simulados localmente.

O interferômetro de Yurke‑Stoler e a arquitetura da prova

Os pesquisadores empregaram um arsenal de ferramentas matemáticas e conceituais sofisticadas para demonstrar seu teorema: o interferômetro de Yurke‑Stoler, técnicas de pós‑seleção, o conceito de “apagamento quântico” (quantum erasure), indução matemática e vasta experiência na construção de modelos de variáveis ocultas.

O resultado é construtivo: não apenas demonstra que a não‑localidade existe, mas mostra, passo a passo, como projetar experimentos ópticos que revelem essa propriedade para qualquer estado em investigação.

Dr. Marcin Markiewicz, do Instituto de Informática Teórica e Aplicada em Gliwice, co‑autor do estudo, sublinha: “Essa diferença aparentemente sutil introduz novas regras básicas para descrever o mundo: ela exige a simetrização ou anti‑simetrização da função de onda em sistemas com múltiplas partículas.”

Bell, Bohr e os fantasmas de Einstein

John Stewart Bell, o físico norte‑irlandês cujo teorema de 1964 fundamenta toda essa discussão, demonstrou que certas correlações quânticas violam as “desigualdades de Bell”, limites que qualquer teoria local e realista deveria respeitar. As violações experimentais dessas desigualdades, confirmadas em experimentos cada vez mais rigorosos (incluindo os que renderam o Nobel de Física de 2022 a Aspect, Clauser e Zeilinger), provam que a natureza é, de fato, não‑local.

O que a pesquisa polonesa acrescenta é uma camada ainda mais profunda: a não‑localidade não requer a criação artificial de entrelaçamento através de interações cuidadosamente controladas. Ela emerge naturalmente da simples indistinguibilidade das partículas.

Corroborando essa linha de investigação, outro estudo publicado em agosto de 2025 na revista Science Advances por Kai Wang e colaboradores demonstrou experimentalmente a violação das desigualdades de Bell com fótons não‑entrelaçados, utilizando o que chamaram de “indistinguibilidade por identidade de caminho”. Os resultados excedem o limiar clássico por mais de quatro desvios‑padrão, uma confirmação estatística robusta de que a não‑localidade pode emergir sem entrelaçamento convencional.

O tecido do cosmos

Charles W. Misner, John A. Wheeler e Kip S. Thorne, este último Nobel de Física de 2017, já haviam reconhecido em seu clássico Gravitation (1973) o profundo mistério da identidade das partículas. Escreveram que nenhuma explicação satisfatória havia sido apresentada. Meio século depois, a física ainda tateia esse enigma, mas agora com ferramentas conceituais mais afiadas.

A implicação filosófica é vertiginosa: se todas as partículas de um mesmo tipo estão entrelaçadas, então existe uma rede de correlações quânticas que se estende por todo o universo observável. O elétron que orbita no átomo de carbono do seu dedo mindinho está, em algum sentido físico preciso, conectado ao elétron de uma estrela em Andrômeda.

Błasiak formula a questão com a elegância que distingue os físicos‑filósofos: “Nossa pesquisa revela que a própria indistinguibilidade das partículas esconde uma fonte de entrelaçamento à qual podemos acessar. A não‑localidade, então, estaria tecida na própria estrutura do universo?”

Da física quântica à governança digital: uma nota do autor

Permito‑me, aqui, uma digressão que talvez só eu, físico de formação, jurista por ofício, nordestino por destino, ousaria fazer.

Na minha mais tenra infância, na zona rural de João Pessoa, dentre as coisas que meu avô tentava ensinar, não como lições de um conhecimento a ser passado, mas como prática cotidiana, estavam os saberes e a cosmologia indígena. Filho de indígena e escravizados, Percival avô era a personificação da ancestralidade. Nos detalhes ritualísticos da Jurema Sagrada, aprendi a essência da ideia de “corpo‑território”. Lembro de estarem em círculo e a entidade pedir para que todos “assuntassem” a respeito de determinada pessoa. Era para focar o pensamento sobre alguém a quem o grupo desejava enviar bons fluidos, energias de cura, proteção. Entrelaçamento, diriam os físicos poloneses.

A própria noção do “eu”, exacerbada na cultura europeia e materializada nas legislações de proteção de dados, carrega esse vício de origem. O Brasil copiou essa lógica: sempre a pessoa no seu mais egoísta individualismo, o titular de dados como mônada isolada, o sujeito de direito como átomo social. Mas os Potiguara sabiam, como sabem os físicos quânticos de Cracóvia, que não existe partícula isolada. Que o “eu” é ficção útil, não verdade ontológica.

Não estou aqui confessando um retorno à fé na cosmologia Tupi ou na mitologia Iorubá. O ceticismo metodológico me afastou disso há décadas. Mas a dialética nos ensina que não é porque ainda não encontramos uma explicação científica que ela não exista. Nós apenas não a descobrimos ainda. O corpo‑território, a ideia do comum, de que todos estão interligados, é lição a ser aprendida seja lembrando meu avô, o outro Percival, vivenciando os saberes Potiguara, seja assistindo Avatar, o filme de James Cameron que Hollywood transformou em blockbuster sem saber que repetia cosmogonias milenares.

A física quântica, com seu formalismo matemático impecável, está apenas começando a alcançar o que a Jurema Sagrada já praticava nos terreiros da Paraíba. A não‑localidade não é novidade para quem “assuntou” em círculo.

O universo quântico nos ensina que a separação é ilusão. Que aquilo que parece isolado está, nas camadas mais profundas da realidade, inextricavelmente conectado. Essa lição não é apenas cosmológica. É civilizacional.

Quando defendemos, no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), os princípios da governança multissetorial, da neutralidade da rede, da proteção de dados pessoais, estamos, talvez sem saber, ecoando a física das partículas idênticas. Na internet, como no universo quântico, não existe verdadeira separação. O dado que trafega em São Paulo está entrelaçado com a infraestrutura de Frankfurt, com os cabos submarinos que cruzam o Atlântico, com os satélites em órbita, com as decisões regulatórias de Bruxelas e Pequim.

A não‑localidade quântica nos lembra que vivemos em um cosmos de correlações. E que, portanto, a governança, seja de partículas, de bits ou de direitos, deve reconhecer essa interdependência fundamental.

O jabuti e o entrelaçamento

Volto ao jabuti do sertão, com sua sabedoria lenta e profunda. Os físicos poloneses nos dizem que o universo inteiro é uma renda de bilros, cada fio conectado a todos os outros, cada partícula espelhando todas as demais.

A ciência contemporânea, quando atinge seus momentos de maior lucidez, não contradiz a intuição ancestral dos povos. Apenas a formaliza. Apenas demonstra, com o rigor das equações e a beleza dos experimentos, aquilo que os místicos sempre sussurraram: somos um.

Referências científicas

  • Błasiak, P.; Markiewicz, M. Identical particles as a genuine non-local resource. npj Quantum Information, v. 11, n. 171, 2025. DOI: 10.1038/s41534-025-01086-x.
  • Wang, K. et al. Violation of Bell inequality with unentangled photons. Science Advances, 2025. DOI: 10.1126/sciadv.adr1794.

Sobre o autor: Percival Henriques é conselheiro do CGI.br, presidente da ANID (Associação Nacional de Inclusão Digital), membro do Comitê Nacional de Cibersegurança (CNCiber) e autor de “Direito à Realidade: Por um Constitucionalismo Digital para o Brasil”. Escreve sobre tecnologia, direito e o mistério de existir.