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PL 2.338 e a Nova Disputa pelo Cérebro do Brasil: quando a Inteligência Artificial redefine soberania

PL 2.338 e a Nova Disputa pelo Cérebro do Brasil: quando a Inteligência Artificial redefine soberania

O debate sobre o PL 2.338/2023, que pretende regular o uso de Inteligência Artificial no Brasil, avançou. Mas avança de forma tímida, tímida demais para o momento histórico que vivemos. Enquanto o Congresso se ocupa — legitimamente — da proteção dos indivíduos, as potências globais correm em outra direção: defendem, com unhas, algoritmos e cláusulas secretas, a soberania cognitiva de seus próprios países.

O Brasil, entretanto, permanece vulnerável. Não porque falte legislação, mas porque falta uma pergunta central, ignorada no debate público e tratada com constrangedora delicadeza pelas instituições: quem vai controlar a inteligência que descreve, aprende e antecipa o funcionamento do Brasil?

A IA já não conversa apenas com pessoas. Ela conversa com sistemas inteiros — e eles estão abertos como feridas.

O que está em jogo não são dados pessoais — é o cérebro estrutural do país

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) protege CPF, nome, endereço, comportamento individual. Mas o que alimenta a inteligência artificial global não são esses fragmentos humanos. É um conjunto de dados que descreve o Brasil enquanto organismo vivo: seus fluxos financeiros, suas matrizes energéticas, suas rotinas logísticas, sua agricultura, suas dinâmicas culturais, seus ciclos industriais, sua infraestrutura crítica.

Esse conjunto não é dado: é conhecimento. E, uma vez ingerido por modelos estrangeiros, transforma-se em vantagem estratégica — econômica, militar, técnica, cultural.

Quando essa inteligência retorna ao Brasil, não retorna como cooperação. Retorna como dependência.

A virada cognitiva anunciada pelos Estados Unidos

A nova National Security Strategy dos Estados Unidos sintetiza a reconfiguração do poder global: IA, computação avançada, chips e tecnologias quânticas são agora pilares da hegemonia de longo prazo. Não é alegoria do Vale do Silício: é política de Estado.

O documento é claro ao afirmar que essas tecnologias determinarão a liderança econômica e militar da próxima geração. É a diplomacia dizendo em voz alta aquilo que o Pentágono já sabia: a disputa pelo século XXI é uma disputa pelo cérebro do mundo.

Ao definir que é preciso “proteger cadeias críticas e preservar vantagem em IA e manufatura avançada”, os EUA reposicionam a IA como infraestrutura estratégica. Não se trata apenas de proteger servidores. Trata-se de proteger o que alimenta esses servidores: dados críticos, conhecimento crítico, inteligência crítica.

O Brasil não precisa copiar essa agenda — mas precisa compreendê-la, se quiser continuar existindo como nação tecnológica e não como território de treinamento alheio.

O datacenter não é o problema. O modelo é.

A verdadeira refinaria de dados não está no concreto refrigerado dos datacenters. Ela está nos modelos de IA. É neles que padrões são destilados, combinados, cruzados e convertidos em previsões capazes de influenciar mercados, políticas públicas e decisões institucionais.

Esses modelos aprendem como o Brasil funciona — e, ao aprender, passam a antecipar e reorganizar o país, muitas vezes com mais precisão do que órgãos estatais.

A assimetria é brutal: o Brasil alimenta o modelo, mas o modelo não devolve soberania.

Como a vulnerabilidade aparece — setor por setor

O risco não é abstrato. É concreto. É silencioso. É setorial.

Sistema financeiro

Modelos estrangeiros já antecipam sinais de estresse, volatilidade e risco soberano antes das instituições nacionais. Eles compreendem a sensibilidade do mercado brasileiro — e podem influenciá-lo.

Energia

Algoritmos capazes de prever gargalos e sugerir intervenções interferem no planejamento de longo prazo das concessionárias. A lógica do modelo substitui a lógica regulatória.

Logística

Sistemas internacionais já conseguem mapear gargalos operacionais do país com mais nitidez do que autoridades brasileiras.

Saúde

Plataformas que processam dados epidemiológicos projetam precificação de seguros e reorganizam redes privadas e públicas de atendimento.

Indústria

Modelos que conhecem telemetria, falhas, produtividade e ciclos industriais conseguem propor reestruturações antes dos próprios ministérios.

Agricultura

O agro brasileiro, celeiro do mundo, está ensinando a modelos estrangeiros como produzir melhor no território brasileiro. O risco é evidente: uma inteligência que aprende com o agro brasileiro pode competir com ele.

Economia criativa

Aqui, o prejuízo é duplo. A IA aprende a estética brasileira, reproduz o sotaque, recria padrões narrativos — e substitui o próprio criador. O Brasil perde mercado dentro e fora de casa.

Ciência e educação

Quando modelos passam a determinar a forma como conhecimento se organiza e circula, a autonomia acadêmica se torna refém do mecanismo que a interpreta.

Por que o PL 2.338 precisa ir além da proteção individual

O projeto acerta ao proteger a pessoa humana — mas erra ao limitar sua ambição a esse ponto. Sem proteção de dados críticos, não existe economia, soberania, defesa, segurança alimentar, saúde pública ou autonomia tecnológica.

Proteger dados críticos não é impedir o uso de IA. É impedir que essa IA aprenda mais sobre o Brasil do que o próprio Brasil.

O país precisa de cláusulas claras: — dados críticos não podem sair do território cognitivo nacional sem salvaguardas; — modelos devem operar com reciprocidade e rastreabilidade; — uso estratégico precisa ter supervisão estatal; — o Brasil deve manter capacidade própria de modelagem.

O risco maior não é tecnológico — é cognitivo

Se modelos estrangeiros aprenderem a interpretar o Brasil melhor do que o próprio Brasil, a dependência deixará de ser digital para se tornar cognitiva.

Dependência cognitiva não se reverte com incentivos. Ela se reverte com poder — e com política.

O PL 2.338 precisa ser reconstruído para proteger a inteligência que descreve o país. Sem isso, o Brasil corre o risco de entregar seu próprio cérebro — gratuitamente — ao mundo. O futuro será decidido por quem controlar a inteligência que organiza sistemas. O relógio corre. O Brasil precisa correr também.

Da redação do Movimento PB • Adaptação do texto de Marco Bechara – Teletime, 08/12/25, 00:42 , Atualizado em 08/12/25, 01:18