Longa de Walter Salles protagonizado por Fernanda Torres estreia no Festival de Cinema de Pequim e dialoga com nova fase da política cultural chinesa
O filme brasileiro Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles e estrelado por Fernanda Torres, estreou com forte repercussão no 15º Festival Internacional de Cinema de Pequim, realizado no último sábado (26). Em menos de duas horas, os ingressos para a sessão inaugural do longa se esgotaram, demonstrando o interesse do público chinês por narrativas latino-americanas e pelo crescente prestígio do cinema brasileiro. A obra começa a ser exibida em circuito comercial na China a partir de 16 de maio.
Premiado no Oscar e reconhecido por sua abordagem poética e realista da ditadura militar no Brasil, Ainda Estou Aqui foi exibido no prestigiado Cinema Artístico do Museu do Cinema da China. A estreia se insere em um contexto geopolítico específico: a redução programada da importação de filmes de Hollywood, anunciada recentemente por autoridades chinesas como uma tentativa de “moderar” a presença norte-americana nas salas do país e estimular a diversidade cultural nas telas.
Essa estratégia tem motivado o governo chinês a buscar novas parcerias e valorizar cinematografias menos tradicionais no mercado local. Para parte da crítica e do público, o momento é oportuno para o Brasil ocupar espaços simbólicos e culturais dentro do imaginário chinês, especialmente com produções que tratam de temas universais — como memória, dor e resistência — a partir de experiências locais.
Um olhar estrangeiro sobre a história do Brasil
O impacto do longa ficou evidente nas reações do público. Zhang Yuanying, jovem espectadora da estreia, relatou que o filme foi sua primeira experiência concreta com a memória da ditadura brasileira: “Antes, eu só tinha contato com essas informações por livros. O filme me proporcionou uma perspectiva mais íntima da história, que me fez sentir a dor das pessoas naquele período”.

Já a historiadora Gu Yingchuan, fluente em português e estudiosa da história latino-americana, destacou a atuação de Fernanda Torres como o ponto alto do longa. “Ela transmite uma mistura de gentileza e força. Depois de assistir, tive vontade de ser aquela mulher — alguém que carrega o trauma, mas que também resiste e enfrenta a brutalidade do regime”, afirmou.
A tradução do título do filme para o mandarim, mantida como Ainda Estou Aqui, também gerou interpretações simbólicas entre as espectadoras. Para muitas delas, o nome representa não só a presença física da protagonista, mas a permanência da memória histórica e da luta de mulheres em contextos autoritários. “A história é assim também, né? A gente ainda está aqui, e o passado continua presente. Não podemos esquecer”, comentou a jovem Ying, que trabalha com marketing.
Uma nova geopolítica da cultura cinematográfica
O sucesso da estreia também reflete uma transformação no mercado audiovisual chinês. A partir da imposição de tarifas durante o governo Trump e da crescente disputa por hegemonia cultural entre China e Estados Unidos, Pequim passou a adotar uma postura mais seletiva em relação à entrada de filmes hollywoodianos. Um porta-voz da Administração Nacional de Cinema confirmou recentemente que haverá uma “redução moderada” nas importações norte-americanas, em favor de uma oferta mais variada e representativa da diversidade global.
A repercussão nas redes sociais, como a popular Weibo, não tardou. Usuários levantaram a hashtag #ReduzirModeradamenteONúmeroDeImportaçõesDeFilmesDosEUA, cobrando maior espaço para produções de países do Sul Global. “Não poderíamos ter mais filmes bons de outros países além dos Estados Unidos? O Brasil acabou de ganhar o Oscar. ‘Ainda Estou Aqui’ é um exemplo”, escreveu a internauta Xiao Pu.

A recepção calorosa do filme brasileiro parece endossar essa nova linha cultural. Para Zhang, a inclusão de produções de países em desenvolvimento oferece uma visão mais rica e menos centrada em padrões ocidentais: “No passado, talvez estivéssemos submetidos a uma cultura hegemônica. Agora, temos a chance de ouvir novas vozes e vivenciar outras realidades”.
Cinema e memória em tempos de mudança
Embora Ainda Estou Aqui tenha sido exibido fora da mostra competitiva — cujo prêmio principal foi vencido pela norueguesa Lilja Ingolfsdottir com Loveable —, o filme brasileiro teve papel de destaque no festival por seu conteúdo político, densidade emocional e valor simbólico. O interesse pelo longa no mercado chinês já é considerado um marco para o cinema brasileiro contemporâneo, especialmente diante das dificuldades de distribuição internacional enfrentadas por produções de países periféricos.
Como observa a estudante Ma Xiao Xiao, “os cinéfilos na China querem ver mais filmes que falem de outras realidades. Não apenas os blockbusters de Hollywood. Queremos histórias de verdade, e o cinema brasileiro tem muito disso para oferecer”.
Com esse passo, Ainda Estou Aqui reafirma não apenas a força do cinema brasileiro em festivais globais, mas também sua capacidade de conectar memórias locais a sentimentos universais — em um mundo onde a disputa por narrativas é também uma disputa por presença, escuta e permanência.
Redação com informações de Brasil de Fato