Star Trek: Uma Odisseia Comunista no Século XXIV?
Enquanto os EUA bombardeavam o Vietnã em 1967, a TV norte-americana exibia um seriado que propunha um futuro radicalmente oposto: sem dinheiro, sem classes sociais e sem imperialismo. Mais de meio século depois, Star Trek segue desafiando narrativas capitalistas e inspirando debates sobre utopias possíveis.
A Diretriz Primeira: Anti-Imperialismo como Regra Cósmica
Em 9 de fevereiro de 1967, horas após os EUA destruírem o porto de Haiphong, no Vietnã, a NBC exibia um episódio de Star Trek que introduzia a Diretriz Primeira — norma que proíbe a Federação Unida de Planetas de interferir em civilizações menos desenvolvidas, mesmo que isso custe vidas. A regra, adotada por uma sociedade futurista que o público via como extensão dos EUA, era um manifesto anti-imperialista em plena Guerra Fria.
Ao longo de 12 séries e 939 episódios, a Diretriz Primeira serviu para explorar dilemas éticos, como quando capitães violam a norma para salvar espécies em extinção. Mas sua existência só faz sentido em um mundo onde a humanidade superou a escassez e o capitalismo — um comunismo luxuoso, como definiu o economista Yanis Varoufakis.
Terra do Século XXIV: Sem Dinheiro, Sem Fome, Sem Necessidade
Em Star Trek, a Terra do futuro não tem moedas, propriedade privada ou trabalho alienante. A tecnologia dos replicadores — máquinas que transformam energia em matéria — eliminou a escassez, permitindo que as pessoas se dediquem à arte, ciência e autoconhecimento.
Num episódio emblemático de The Next Generation (1988), o empresário Ralph Offenhouse, congelado no século XX e revivido no XXIV, pergunta ao Capitão Picard como sobreviver em um mundo sem bancos. A resposta ecoa Marx:
“Superamos a obsessão por acumular coisas. Saímos da nossa infância.”
A ideia remonta a Aristóteles, que imaginou máquinas libertando humanos do trabalho braçal, e a Marx, que previu uma sociedade onde todos podem “pescar de manhã e criticar teatro à noite”. Na Federação, como no restaurante do pai do Capitão Sisko em Nova Orleans, trabalha-se por paixão, não por necessidade.
Borg vs. Ferengi: Críticas ao Autoritarismo e ao Neoliberalismo
Star Trek não poupa críticas a dois extremos: o coletivismo autoritário e o neoliberalismo selvagem.
- Os Borg: Uma colmeia de ciborgues que assimilam espécies, apagando individualidades. Quando a ex-drone Sete de Nove é resgatada, sua abstinência da “voz coletiva” ilustra os perigos da sedução autoritária.
- Os Ferengi: Capitalistas caricatos cujo “livro sagrado” são 285 Regras de Aquisição, como “Guerra é boa para os negócios” e “Trate os devedores como família… e os explore”. Em um episódio de Deep Space Nine, trabalhadores ferengi fazem greve citando Marx: “Trabalhadores do mundo, uni-vos!”
Tecnologia e Propriedade: A Chave da Utopia
A visão comunista de Star Trek não nega a tecnologia, mas subverte quem a controla. Enquanto Keynes sonhava que máquinas trariam prosperidade no século XX (e falhou, pois a propriedade ficou nas mãos de poucos), a Federação garante que replicadores e naves estelares sejam bens comuns.
O seriado também adverte sobre riscos ambientais e éticos do progresso. Quando cientistas provam que viagens em dobra espacial danificam o universo, a Federação debate se deve frear sua frota — ecoando dilemas atuais sobre mudança climática.
IA e Humanidade: O Caso do Androide Data
Em The Next Generation, o androide Data desafia noções de humanidade. Quando cientistas querem desmontá-lo para replicá-lo, ele recusa, levando a um julgamento histórico. Seu defensor, o Capitão Picard, argumenta:
“A Frota Estelar foi fundada para descobrir novas formas de vida. Pois ali está uma. Esperando.”
O veredito: Data tem direito à autonomia. A série, porém, não romantiza a IA. Ela diferencia inteligência artificial (como chatbots) de senciência — um debate urgente na era do GPT-4.
Lições para a Esquerda do Século XXI
Para Varoufakis, Star Trek oferece um mapa para uma esquerda em crise:
- Tecnologia como aliada, não vilã: A Federação usa IA e replicadores para abolir a escassez, mas sob controle coletivo.
- Rejeitar autoritarismos: O comunismo da série é libertário, não uma ditadura do proletariado.
- Lutar por propriedade comum: Sem transferir o controle da tecnologia das oligarquias para os cidadãos, o progresso só ampliará desigualdades.
Conclusão: Mais que ficção científica, Star Trek é um experimento político. Seu comunismo não é sobre fuzis ou fome, mas sobre ética, criatividade e — como diz Picard — “melhorar a si mesmo”. Enquanto o capitalismo enfrenta crises ecológicas e digitais, a Federação Unida de Planetas segue como farol de um futuro possível.
Texto adaptado de artigo de Yanis Varoufakis em Outras Palavras, revisado pela redação.
Descubra mais sobre Movimento PB
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.