Automação e o Futuro do Trabalho: Por que a tecnologia não salvará o capitalismo — e talvez abra outra porta
Os debates sobre automação nunca foram neutros. Entre as promessas de robôs libertadores e os avisos de um colapso social causado pela inteligência artificial, cresce uma pergunta incômoda: e se a tecnologia não for nem salvação nem ameaça, mas apenas o espelho de um capitalismo que não consegue mais entregar o que prometeu?
Essa é a provocação que atravessa as ideias do sociólogo e economista Aaron Benanav, reconstruídas e discutidas aqui em linguagem direta para o leitor brasileiro. Seu diagnóstico é duro: não estamos caminhando para um desemprego em massa causado por máquinas hiperprodutivas. Estamos, na verdade, presos a um capitalismo em longo declínio, onde a falta de empregos não vem da automação, mas da incapacidade estrutural de a economia crescer.
A tese central: não faltam empregos porque sobraram robôs, mas porque sobra capacidade produtiva
Segundo Benanav, a desaceleração da criação de empregos já dura décadas. E ela começou muito antes da inteligência artificial, dos aplicativos e dos drones entregadores.
O processo-chave é a sobrecapacidade industrial: desde o pós-guerra, a competição global levou países como EUA, Alemanha e Japão a expandirem suas indústrias até um ponto em que há mais capacidade produtiva do que demanda real. Resultado: lucros menores, investimentos menores e economias travadas.
Isso derruba a narrativa dominante do Vale do Silício: a automação não “roubou” empregos — o capitalismo é que não consegue criá-los porque funciona travado, com taxas de lucro comprimidas e mercados saturados.
Do “fim do trabalho” ao subemprego permanente
Com a indústria esvaziada, milhões de trabalhadores migraram para o setor de serviços — outro problema. Serviços, ao contrário das fábricas, têm baixo potencial de automação e produtividade. Para competir, empresas reduzem salários, fatiam jornadas, criam microtarefas.
É o terreno perfeito para a precarização. Entregadores, motoristas de aplicativo, cuidadores, frilas: é a “classe-que-vive-do-trabalho” reconfigurada, menos protegida e mais explorada.
A plataforma digital aparece aqui não como revolução tecnológica, mas como mecanismo de intensificação do trabalho barato.
O capitalismo de plataforma como sintoma (não como ruptura)
Benanav se articula com pesquisadores como Nick Srnicek para mostrar como empresas digitais só explodiram porque havia capital financeiro sobrando — um produto direto das políticas monetárias dos EUA desde os anos 1990.
Com juros baixos, investidores despejaram bilhões em plataformas “disruptivas”, mesmo que sem lucro. O objetivo não era reinventar o mundo do trabalho, mas contornar a estagnação industrial.
Por isso, na superfície temos carros autônomos, entregas por drones e chatbots geniais. No fundo, temos um capitalismo dependente de bolhas. Bolha ponto.com. Bolha imobiliária. Bolha da IA? Talvez.
A armadilha da renda básica universal
Benanav também tensiona propostas progressistas, como a renda básica universal (RBU). Ele não rejeita a ideia, mas revela seu limite essencial: a crise do capitalismo não é falta de dinheiro circulando, mas falta de produção e atividade econômica real.
Em uma economia global travada, qualquer RBU alta o suficiente para reduzir desigualdades exigiria enfrentar o capital não apenas na distribuição — mas na produção. Ou seja: mexer no coração do sistema.
O debate não é econômico. É político.
O que resta? A velha e sempre nova ideia da reorganização comunal do trabalho
Quando projeta o futuro, Benanav busca alternativas menos tecnocráticas e mais sociais. A utopia dele não é um mundo totalmente automatizado, mas uma sociedade que reorganiza o trabalho de modo cooperativo, racional e igualitário.
Aqui entram tradições que vão de Marx a Kropótkin: menos horas trabalhadas, decisões coletivas sobre investimentos, produção orientada por necessidades e tecnologias guiadas pelo bem comum — não pela corrida pelo lucro.
Não é uma visão futurista brilhante. É uma proposta radical no sentido original: ir à raiz.
O papel do Brasil — e do Sul global — neste debate
A análise de Benanav não ignora que, no Brasil e em boa parte do Sul global, a informalidade e o subemprego existiam muito antes da crise industrial.
O problema, portanto, não é apenas tecnológico. É histórico, racial, ambiental e estrutural. A automação se combina com destruição da natureza, desigualdade racial, capitalismo de plataforma e mineração predatória.
Por isso, qualquer saída exige rearranjos que ultrapassam a economia: passam por política, terra, clima, raça e democracia.
Conclusão: a tecnologia só será emancipatória quando o trabalho também for
A automação não é atalho para o comunismo. Também não é ameaça apocalíptica inevitável. A tecnologia é, antes de tudo, um campo de disputa.
E Benanav lembra: sociedades não mudam porque as máquinas evoluem, mas porque as pessoas decidem mudar. A crise do trabalho é profunda demais para ser “corrigida” com aplicativos ou robôs. O que está em jogo é o modelo de sociedade que queremos — e quem terá poder para construí-lo.
Enquanto o capitalismo continuar baseado em lucro, competição e expansão compulsória, até a máquina mais inteligente repetirá as velhas misérias. Mas se houver força política para reorganizar produção, tempo e riqueza, então talvez a automação possa, enfim, libertar.
Da redação do Movimento PB. Adaptação do artigo publicado em Outras Palavras
