O culto à beleza atinge novos patamares na China, onde mais de 20 milhões de procedimentos estéticos são realizados por ano. Impulsionado por influenciadores, aplicativos e padrões visuais distorcidos, esse movimento vem acompanhando o crescimento de clínicas ilegais e relatos de complicações graves. A trajetória de Abby Wu, que se submeteu a mais de 100 cirurgias, ilustra o impacto físico e psicológico dessa indústria em ascensão.
A busca por padrões estéticos idealizados ganhou proporções inéditas na China, onde milhões de jovens aderem a cirurgias plásticas, muitas vezes arriscadas, em nome de uma aparência mais “aceitável”. Abby Wu, uma das primeiras influenciadoras do setor, é hoje símbolo dessa transformação. Aos 35 anos, ela já se submeteu a mais de 100 procedimentos estéticos, muitos deles invasivos, acumulando gastos que ultrapassam meio milhão de dólares.
Abby lembra com clareza o início dessa jornada. Em sua primeira cirurgia, ainda adolescente, vestida com a camisola hospitalar e tomada pela ansiedade, ouviu da mãe: “Seja corajosa e entre. Você ficará bonita quando sair.” A experiência foi traumática. A anestesia parcial permitiu que ela permanecesse acordada, vendo a gordura ser removida do próprio corpo e a quantidade de sangue perdida durante o procedimento.
Hoje, além de coproprietária de uma clínica de estética em Pequim, Abby compartilha com milhões de seguidores a rotina de intervenções e os bastidores das transformações físicas. Sentada diante do espelho em seu apartamento luxuoso, ela aplica maquiagem para esconder os hematomas de uma recente injeção de redução facial – procedimento mensal que segue três cirurgias de maxilar.
Para Abby, a mudança foi positiva. Ela afirma que ganhou autoconfiança e acredita que a decisão da mãe foi acertada. A exposição online tornou-se parte essencial de sua identidade, com postagens que documentam os resultados, os desafios e os efeitos colaterais das cirurgias.
A ascensão das cirurgias plásticas na China ocorre em um contexto de crescente pressão social e digital. Estima-se que 20 milhões de procedimentos sejam realizados anualmente no país, sendo 80% deles em mulheres com idade média de 25 anos. Essa explosão é alimentada pela popularização de redes sociais e pelo aumento da renda disponível, além da valorização de características influenciadas por padrões ocidentais, cultura pop asiática e estética de desenhos animados.
Entre os procedimentos em alta estão o uso de botox atrás das orelhas – para inclinar levemente as orelhas para frente –, cirurgias de pálpebras inspiradas em personagens de anime e o encurtamento do lábio superior. Essas modificações visam uma aparência infantilizada e delicada, tida como ideal em determinados nichos digitais.
Aplicativos como SoYoung e GengMei ganharam notoriedade por utilizar algoritmos para identificar “imperfeições” faciais e recomendar cirurgias, recebendo comissões por cada indicação. Tais plataformas também funcionam como redes sociais, onde usuários compartilham diários estéticos e buscam validação de “superusuários” como Abby. No entanto, mesmo após centenas de procedimentos, o “Espelho Mágico” do SoYoung ainda sugere correções para o rosto dela.
Com a demanda crescente, clínicas surgem em ritmo acelerado – nem sempre de forma regulamentada. Relatórios indicam que, em 2019, cerca de 80 mil estabelecimentos ofereciam procedimentos sem licença na China, enquanto mais de 100 mil profissionais atuavam sem a devida qualificação. A consequência tem sido um número alarmante de complicações, muitas vezes irreversíveis.
A cirurgiã Yang Lu, que atua em Xangai com registro oficial, relata que o volume de pacientes buscando correções de cirurgias malfeitas tem crescido. “Atendemos pessoas que fizeram procedimentos dentro de casa ou em clínicas clandestinas. Muitas vezes o estrago já está feito.”
Yue Yue, de 28 anos, vivenciou essa realidade. Após receber preenchimentos faciais de uma amiga sem licença, seu rosto endureceu. As tentativas de correção em outras clínicas agravaram a situação, deixando cicatrizes e danos estruturais. Com a autoestima abalada e sua carreira em recursos humanos prejudicada, ela decidiu procurar ajuda com Yang e já passou por três cirurgias reparadoras.
Apesar dos avanços, Yue sabe que alguns danos serão permanentes. “Não quero mais ser bonita”, afirma, exausta da pressão estética.
A realidade por trás da estética perfeita nas redes sociais revela um cenário de excessos, riscos e transformações profundas no imaginário coletivo chinês. Entre aplicativos que promovem correções intermináveis e jovens em busca de aceitação, o mercado da beleza continua em expansão – com impacto direto sobre a saúde física e emocional de milhões.
Foto: Abby Wu, que passou por mais de 100 operações, é uma das primeiras influenciadoras de cirurgia plástica da China