Saúde

Autossabotagem: entenda a batalha biológica no seu cérebro e saiba como romper o ciclo

Autossabotagem: entenda a batalha biológica no seu cérebro e saiba como romper o ciclo

Neurociência revela que o comportamento não é apenas falta de força de vontade, mas um mecanismo de defesa primitivo que pode ser reconfigurado através da neuroplasticidade.

Você já se pegou desistindo de um projeto importante na reta final, procrastinando uma conversa difícil ou boicotando uma dieta que estava funcionando? Se a resposta for sim, você não está sozinho. A autossabotagem é um fenômeno universal e, ao contrário do que o senso comum sugere, não se trata apenas de “preguiça” ou falta de caráter. A ciência explica: trata-se de uma batalha biológica interna entre a necessidade primitiva de segurança e o desejo racional de evolução.

Estudos recentes em neurociência comportamental apontam que a autossabotagem opera como um sistema de proteção descalibrado. O cérebro humano, evoluído para garantir a sobrevivência em ambientes hostis, muitas vezes interpreta mudanças benéficas — como uma promoção no trabalho ou um novo relacionamento — como ameaças potenciais, disparando gatilhos de fuga.

O psicólogo Yuri Busin destaca que esse conflito ocorre primordialmente entre duas estruturas cerebrais distintas: a amígdala, sentinela emocional ligada ao medo e à reação de luta ou fuga, e o córtex pré-frontal, a sede do julgamento racional e do planejamento. “A autossabotagem é uma briga entre o emocional e o racional. A amígdala reage primeiro e tenta poupar energia, empurrando a pessoa para aquilo que é mais automático e menos desconfortável”, explica o especialista.



O Córtex Pré-Frontal: o gerente exausto

Para compreender a profundidade dessa disputa, é crucial analisar o papel do córtex pré-frontal (CPF). Localizado logo atrás da testa, ele é a parte mais evoluída do cérebro humano, responsável pelas funções executivas: planejamento de longo prazo, controle de impulsos, regulação emocional e tomada de decisões complexas. É o CPF que “sabe” que você precisa estudar para o concurso ou economizar dinheiro.

No entanto, o córtex pré-frontal é um recurso biologicamente caro. Ele consome uma quantidade desproporcional de glicose e oxigênio para funcionar plenamente. Em situações de estresse ou cansaço, o cérebro tende a “desligar” parcialmente essa área para conservar energia, passando o comando para o sistema límbico (onde reside a amígdala), que opera de forma mais rápida e econômica. É nesse momento de fadiga decisória que a autossabotagem ganha força: sem a supervisão do “gerente racional”, o cérebro opta pelo caminho de menor resistência, sacrificando o futuro em prol do alívio imediato.

A química do alívio imediato

A neuropsicóloga Sandra Schewinsky, do Hospital Sírio-Libanês, esclarece que o sistema límbico reage milissegundos antes do pensamento consciente. Diante de um desafio, ele envia sinais de alerta. “O córtex pré-frontal interpreta essa emoção como risco e pode optar pela esquiva”, pontua.

Esse processo é reforçado quimicamente. Quando você decide adiar uma tarefa temida, regiões como o núcleo accumbens — interface entre motivação e ação — liberam descargas de dopamina. O resultado é uma sensação instantânea de alívio. O problema é que o cérebro “aprende” com essa recompensa química. Cria-se um ciclo vicioso: estresse (gatilho), esquiva (ação) e alívio (recompensa), seguido invariavelmente por culpa e frustração, que reiniciam o ciclo com ainda mais ansiedade.

Traumas e a arquitetura das memórias

A autossabotagem também possui raízes profundas na forma como processamos o passado. Experiências marcadas por medo, fracasso, vergonha ou rejeição não são apenas lembranças; elas alteram a arquitetura neural. Quando vivemos um trauma ou uma situação de alto estresse emocional, o cérebro cria “estradas neurais” robustas associando aquela atividade à dor.

Segundo a teoria hebbiana da neurociência, “neurônios que disparam juntos, se conectam juntos”. Se, na infância ou início da vida adulta, a exposição ao julgamento público resultou em humilhação, o cérebro consolida um padrão de defesa automática. Anos depois, diante de uma oportunidade de falar em público, o hipocampo (responsável pela memória) resgata aquele arquivo emocional e a amígdala dispara o alerta de perigo, muitas vezes sem que a pessoa tenha consciência do motivo real de sua paralisia. O cérebro está, literalmente, tentando protegê-lo de uma “ameaça” que já não existe mais na realidade presente.

Neuroplasticidade: o caminho da reconfiguração

A boa notícia, corroborada pelos especialistas, é que o cérebro não é estático. Graças à neuroplasticidade — a capacidade do sistema nervoso de criar novas conexões e reorganizar sua estrutura —, é possível romper o ciclo da autossabotagem. Mas, como alerta Yuri Busin, “não existe mágica”.

O processo exige repetição consciente. É necessário “pavimentar” novas estradas neurais. Isso se faz através de:

  • Exposição gradual: Enfrentar pequenos desconfortos de forma controlada para “ensinar” à amígdala que aquela situação é segura.
  • Ressignificação cognitiva: Frequentemente trabalhada em psicoterapia, ajuda a alterar a interpretação que o córtex pré-frontal faz dos sinais emocionais.
  • Gestão do estresse: O estresse crônico atrofia dendritos no córtex pré-frontal e hipertrofia a amígdala. Práticas de redução de estresse são vitais para manter o “gerente racional” no comando.

“Sob estresse, fica muito mais difícil implementar novos hábitos”, reforça Sandra Schewinsky. Por isso, o tratamento de quadros de base, como ansiedade e depressão, é fundamental. A saída da autossabotagem não é marcada pela perfeição, mas pela constância. Cada vez que o indivíduo escolhe a ação planejada em vez da esquiva emocional, ele fortalece a via neural do autocontrole, tornando a próxima decisão correta fisiologicamente mais fácil de ser tomada.

Adaptado e enriquecido de Metrópoles, pela redação do Movimento PB. [GEM-MOV-22112025-X7J9K2L-V018]