Com 472 mil licenças por transtornos mentais, país enfrenta o maior número em uma década, pressionando empresas e governo por soluções.
O Brasil alcançou em 2024 um marco alarmante na saúde mental: 472.328 trabalhadores foram afastados por transtornos como ansiedade e depressão, o maior número em pelo menos dez anos, segundo dados exclusivos do Ministério da Previdência Social obtidos pelo g1. Esse total, que representa um aumento de 68% em relação aos 283 mil casos de 2023, expõe uma crise que impacta não só a vida dos trabalhadores, mas também a economia e as empresas. Com um custo estimado em até R$ 3 bilhões ao INSS, o cenário reflete cicatrizes da pandemia, condições de trabalho extenuantes e uma sociedade em transformação.
Um Raio-X da Crise
Os números do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) mostram que, dos 3,5 milhões de pedidos de benefícios por incapacidade temporária (antigo auxílio-doença) em 2024, 13,5% foram motivados por questões de saúde mental. Cada afastamento durou, em média, três meses, com trabalhadores recebendo cerca de R$ 1,9 mil mensais. A maioria dos afetados é composta por mulheres (64%), com idade média de 41 anos, muitas enfrentando quadros incapacitantes de ansiedade e depressão. São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro lideram em números absolutos, mas, proporcionalmente, Distrito Federal, Santa Catarina e Rio Grande do Sul registram os maiores índices — este último agravado pela enchente que devastou o estado em maio.
Especialistas apontam múltiplas causas para o recorde. “A pandemia deixou um luto coletivo, com mais de 700 mil mortes, além de estresse por isolamento e insegurança financeira”, explica o psiquiatra Arthur Danila, da USP. O aumento de 55% no custo de vida desde 2020, a informalidade crescente e o fim de ciclos pessoais, como o salto de 16% nas separações durante a crise, também pesam. “Saímos do modo emergência, mas as sequelas emocionais emergiram como uma quarta onda da Covid”, acrescenta Danila.
Perfil dos Afastados: Mulheres na Linha de Frente
O predomínio feminino nos dados reflete desigualdades estruturais. “As mulheres enfrentam sobrecarga com trabalho, cuidado familiar e salários menores, além de violência”, diz Wagner Gattaz, especialista em saúde mental no trabalho. Segundo o IBGE, elas ganham menos que homens em 82% das áreas e sustentam 49,1% dos lares brasileiros — cerca de 35 milhões de famílias. A consultora Thatiana Cappellano alerta: “É uma tragédia social. Se essas mulheres, que sustentam tantas casas, colapsam, o impacto econômico será devastador.”
Histórias como a de Amanda Abdias, 28 anos, ilustram o problema. Após anos em tripla jornada para sustentar a família enquanto o marido, demitido na pandemia, não se recolocava, ela sucumbiu a crises de ansiedade em 2024. Já Marcela Carolina, 44 anos, convive com depressão há duas décadas, agravada por ser mulher negra — grupo com 45% mais suicídios que brancos, segundo o Ministério da Saúde. Beatriz de Oliveira, 29 anos, deixou a Bahia para tentar a vida em São Paulo e colapsou sob a pressão de pagar as contas sozinha.
Resposta do Governo e das Empresas
Diante da crise, o Ministério do Trabalho atualizou a Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), incluindo riscos psicossociais — como metas abusivas, jornadas extensas e assédio moral — na fiscalização de segurança e saúde ocupacional. A medida, em vigor desde janeiro, prevê multas de R$ 500 a R$ 6 mil por infração, com foco inicial em setores como teleatendimento, bancos e saúde. “Queremos planos de ação preventivos e corretivos”, diz Viviane Forte, coordenadora de fiscalização do MTE, que planeja contratar 900 novos auditores.
Empresas também reagem. A Coris Seguro Viagem, afetada pela crise no turismo, identificou em 2022 um pico de atestados por motivos psicológicos — luto, pânico e problemas financeiros. “Repensamos nossa estratégia com apoio psicológico e benefícios como academia”, conta Bruno Venâncio, diretor de RH, que viu melhorias no clima interno.
Um Futuro Incerto
Apesar das iniciativas, especialistas questionam a eficácia sem mudanças estruturais. “A NR-1 coloca o tema em pauta, mas normas sozinhas não bastam se as empresas não mudarem”, avalia Cappellano. A OMS estima que transtornos mentais custem US$ 1 trilhão anuais globalmente em produtividade perdida, e o Brasil, com 12% da população ansiosa (segundo a OMS), lidera esse ranking na América Latina.
Para Gattaz, o aumento no diagnóstico — impulsionado por maior conscientização desde a pandemia — é um fator positivo, mas insuficiente. “Médicos estão mais atentos, e as pessoas buscam ajuda, mas precisamos de prevenção nas empresas e políticas públicas robustas.” Enquanto o país lida com os ecos de 2020 e as pressões de um mercado implacável, a saúde mental dos trabalhadores emerge como um desafio urgente — e ainda sem solução à vista.
Texto baseado em dados do g1 e revisado pela nossa redação.