Enquanto governos criminalizam usuários de drogas e a indústria de tecnologia lucra com designs viciantes, o médico húngaro-canadense Gabor Maté oferece um contraponto radical: “O vício não é uma falha moral, mas uma adaptação biológica à dor”. Com décadas de experiência atendendo dependentes em Vancouver — epicentro da crise de opioides na América do Norte —, Maté lança no Brasil “Vício: O Reino dos Fantasmas Famintos” (Editora Sextante), obra que redefine a compreensão sobre dependência.
A Neurociência do Sofrimento
Maté desafia o senso comum ao inverter a lógica tradicional:
- Não é o cérebro que causa o vício, mas o trauma que remodela o cérebro:
- 92% de seus pacientes relatam abuso físico ou emocional na infância (dados do Downtown Eastside Center);
- Circuitos de dopamina e opioides endógenos são sequestrados para aliviar dores invisíveis;
- Comportamentos aditivos — de drogas a compras compulsivas — são tentativas de “autocura”.
“Pergunte a um viciado: ele não busca prazer, mas fuga. A cocaína anestesia a rejeição, o jogo preenche o vazio da desconexão”, explica.
Vancouver: Laboratório de Redução de Danos
A cidade canadense, pioneira em políticas de supervisão segura de drogas, revela insights cruciais:
- Salas de consumo: Nenhuma morte por overdose em 20 anos nesses espaços;
- Abordagem sem julgamento: Oferece tratamento após estabilizar a relação do usuário com a dor;
- Dados chocantes: 78% dos dependentes em Vancouver são sobreviventes de violência doméstica.
“Internar à força é como tratar um osso quebrado com aspirina. Sem resolver o trauma, a recaída é inevitável”, critica Maté.
Os Novos Vícios Invisíveis
O livro alerta para dependências socialmente aceitas:
- Telas infantis: Crianças <4 anos expostas a tablets têm 2x mais risco de desenvolver TDAH (estudo JAMA Pediatrics);
- Jogos de azar: 1 em 5 apostadores patológicos no Brasil já tentou suicídio (Unifesp);
- Workaholism: Viciados em trabalho usam a produtividade para mascarar depressão.
“Um cassino e um escritório de tech startup ativam os mesmos circuitos de recompensa. A diferença é que um tem luzes piscantes”, ironiza.
Psicodélicos Como Ferramenta, Não Droga
Maté defende terapias alternativas baseadas em evidências:
- Ibogaína (Gabão): Reduz sintomas de abstinência de heroína em 72% dos casos;
- Ayahuasca: Estudos no Instituto do Cérebro (RJ) mostram eficácia contra PTSD;
- MDMA: Aprovado nos EUA para depressão resistente.
“A medicina ocidental trata sintomas. Plantas ancestrais curam a alma ferida que os causa”, argumenta.
Por Que a Guerra às Drogas Falha
O médico aponta contradições:
- Proibicionismo ignora ciência: Sabemos desde os anos 1980 que o vício é adaptativo;
- Genética é secundária: Mesmo com “predisposição”, sem trauma, o risco cai 80%;
- Culpar o viciado é conveniente: Absolve sociedade e famílias de suas responsabilidades.
“Prisões custam US$ 50 mil/ano por preso. Tratamento baseado em trauma custa US$ 15 mil — e funciona”, compara.
Um Chamado à Revolução Terapêutica
Maté propõe 4 pilares para mudança:
- Prevenção primária: Identificar e tratar traumas infantis precocemente;
- Políticas públicas: Trocar prisões por centros de acolhimento terapêutico;
- Educação médica: Ensino sobre neurobiologia do trauma nas faculdades;
- Redução de danos: Ampliar modelos como o de Vancouver.
“O vício é um grito de socorro do sistema nervoso. Precisamos ouvi-lo”, conclui.
Para se aprofundar:
- Livro: “Vício: O Reino dos Fantasmas Famintos” (Editora Sextante, 2025)
- Documentário: “The Wisdom of Trauma” (disponível no YouTube)
- Estudo: “Childhood Trauma and Dopamine Dysfunction” (Nature, 2024)
—
Com informações de O Estado de Minas, Ana Bottallo