ANPD Reguladora: O Decreto Visto de 35 Mil Pés
Percival Henriques | Escrito sobrevoando o Rio Chindwin, voo São Paulo – Adis Abeba – Xangai
O Ethiopian Airlines sobrevoa agora o Rio Chindwin, esse tributário do Irrawaddy que testemunhou a invasão japonesa em 1942, rio que viu impérios tentarem o impossível e recuarem diante da geografia implacável da selva birmane.
Vou para Xangai discutir cooperação acadêmica em computação quântica, protocolos de troca de chaves em redes que tornarão obsoleta a criptografia como a conhecemos, enquanto releio pela terceira vez a MPV 1.317 e o Decreto 12.622, publicados naquele 17 de setembro que já parece distante, embora tenham se passado apenas quatro dias desde que li as notícias no café da manhã paulistano.
A Transformação Que Tardou
A ANPD finalmente vira autarquia de natureza especial, com aquela lista de autonomias que todo órgão regulador precisa ter para ser levado a sério: funcional, técnica, decisória, administrativa e financeira, patrimônio próprio, sede no Distrito Federal, o pacote completo que a transforma de departamento em agência de verdade.
Desde 2020 funcionava como órgão da Presidência, estrutura frágil demais para missão hercúlea de regular dados de 203 milhões de brasileiros navegando em mar digital cada vez mais turbulento. Foram sete anos desde a LGPD, cinco desde a criação da ANPD, tempo demais para urgência de menos, mas assim caminha a democracia brasileira, no seu passo peculiar que não é pressa nem é calma, é outra coisa, é tempo brasileiro de fazer as coisas.
Os Duzentos Que Herdarão o Caos
A transformação de 797 cargos vagos em 200 especialistas em regulação de proteção de dados revela economia de recursos e foco em expertise, mas também expõe a dimensão do desafio: duzentos profissionais para regular um universo digital que cresce exponencialmente, que não dorme, que não respeita fusos horários nem fronteiras.
A França tem proporção similar de especialistas, a Alemanha tem mais, a China opera em outra escala completamente, mas comparações podem enganar porque cada país tem seu contexto, sua história, sua forma particular de entender privacidade e controle. Começamos com o possível, e o possível hoje são esses duzentos que ainda nem foram nomeados, que ainda nem sabem que herdarão este imenso quebra-cabeça de dados, direitos, tecnologias e interesses conflitantes.
O Teste Real do ECA Digital
O Decreto 12.622 é onde a teoria encontra a prática de forma mais dramática, porque agora a ANPD coordenará execução de ordens judiciais de bloqueio para proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais, tarefa que parece simples no papel mas é tecnicamente complexa, juridicamente sensível, operacionalmente desafiadora.
Como coordenar três instituições com DNAs diferentes, a ANPD com sua vocação de proteção de dados, a Anatel com sua engenharia de telecomunicações, o CGI.br com sua governança multissetorial da internet? Como executar ordem judicial sem quebrar o roteamento da rede, como bloquear conteúdo nocivo sem virar censura prévia, como proteger a criança sem violar privacidade do adulto? O decreto, numa honestidade rara em textos oficiais, admite que não sabemos ainda: “a técnica mais adequada” será definida posteriormente por Anatel e CGI.br, confissão implícita de que estamos construindo o avião em pleno voo.
O Tempo Político e o Tempo Tecnológico
A MPV tem prazo de vida conhecido e curto: emendas até 24 de setembro, vigência até 16 de novembro, possível prorrogação até 2 de fevereiro de 2026, tempo político brasileiro que não é rápido nem devagar, é o tempo necessário para negociações, articulações, concessões, esse ballet do Congresso que pode fortalecer ou desfigurar qualquer iniciativa.
Enquanto isso, o tempo tecnológico segue outro relógio, mais acelerado, implacável, onde seis meses equivalem a uma era geológica, onde modelos de IA evoluem semanalmente, onde vulnerabilidades são descobertas diariamente, onde dados fluem em velocidade que desafia qualquer tentativa de controle tradicional.
Vista de Myanmar
Lá embaixo, o Chindwin continua seu curso milenar através da selva, indiferente aos impérios que tentaram dominá-lo, aos exércitos que tentaram usá-lo como rota de conquista, às tecnologias que prometeram domesticá-lo. O rio simplesmente flui, como fluem os dados na rede global, como flui a inovação tecnológica, como flui o tempo que não espera decretos nem medidas provisórias.
A ANPD reguladora tenta ser ponte entre esses dois mundos, o mundo do direito com seus prazos e procedimentos, e o mundo digital com sua velocidade e mutabilidade. Tarefa ingrata mas necessária, porque sem alguma forma de governança, sem alguma tentativa de estabelecer regras mínimas, o que resta é a lei do mais forte, e no mundo digital o mais forte raramente é o usuário comum, o cidadão que só quer navegar sem ter seus dados roubados, vendidos, manipulados.
As Ausências Eloquentes
Tão revelador quanto o que está nos decretos é o que não está: não há estratégia específica para IA generativa que já transforma tudo que toca, não há preparação para era pós-quântica que se aproxima inexorável, não há resposta para deepfakes que destroem reputações em segundos, não há plano para neurotecnologia que promete ler pensamentos e emoções.
A ANPD nasce para regular um mundo que já está mudando para outro, como se tentássemos fotografar um trem em movimento com câmera de longa exposição: a imagem sai borrada, indefinida, já obsoleta quando revelada. Mas talvez seja assim mesmo, talvez a regulação sempre chegue depois, talvez seu papel não seja antecipar o futuro mas tentar dar alguma ordem ao presente caótico.
A Questão Que Paira a 35 Mil Pés
É avanço ou chegamos tarde demais? A resposta honesta é que são as duas coisas simultaneamente: avanço porque finalmente temos estrutura institucional compatível com a complexidade do desafio, atraso porque o mundo digital já está duas ou três gerações à frente do que conseguimos regular.
Mas é o que temos, é de onde partimos, e há algo de dignidade nesse esforço de tentar, mesmo sabendo que é parcial, mesmo sabendo que é insuficiente, mesmo sabendo que amanhã tudo pode mudar novamente.
Três Horas para Xangai
O Chindwin já desapareceu no horizonte, Myanmar fica para trás, e à frente está a China com suas redes quânticas operacionais, seu firewall nacional, sua visão particular de como governar o digital. Vou discutir cooperação acadêmica, protocolos técnicos, possibilidades de parceria, enquanto o Brasil ainda debate estrutura básica de proteção de dados.
Não é ironia, é realidade: precisamos fazer as duas coisas ao mesmo tempo, regular o presente e preparar o futuro, proteger o cidadão hoje e capacitar o país para amanhã, criar estrutura e manter flexibilidade, ser rigorosos sem ser engessados.
A ANPD reguladora é nossa aposta nesse equilíbrio impossível mas necessário. Pode dar certo, pode dar errado, provavelmente dará algo no meio do caminho, como costumam dar as coisas brasileiras: não perfeito, não terrível, mas funcional o suficiente para seguirmos adiante.
O rio lá embaixo continua fluindo, como fluirão os dados com ou sem agência reguladora. A diferença é que agora tentamos ter alguma influência na direção do fluxo, alguma proteção para os mais vulneráveis, alguma soberania sobre nosso próprio destino digital.
É pouco? Talvez. Mas é começo, e todo voo transcontinental começa com a decisão de levantar voo.
Redação do Movimento PB [NMG-OGO-21092025-V9W3X1-13P]
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