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O espectro da inteligência artificial e seus desafios para a escrita e a escola

Inteligência artificial transforma a escrita e desafia a escola a reinventar a formação do pensamento por meio da reescrita crítica e autoral.
O espectro da inteligência artificial e seus desafios para a escrita e a escola

Vivemos um momento de transformação radical na natureza da escrita devido ao advento das inteligências artificiais generativas e dos chatbots de linguagem natural, conhecidos como large language models. Diferentemente da simples troca de ferramentas no passado, essas tecnologias introduzem a reescrita algorítmica como elemento inseparável dos textos produzidos atualmente. Assim, o ato de escrever deixou de ser um gesto de expressão individual originalmente humana para se tornar um processo contínuo e intermediado por máquinas que podem reformular e complementar frases infinitamente.

Historicamente, a escrita era entendida como uma ação intencional e profundamente ligada à subjetividade do autor, uma manifestação singular que refletia pensamentos e escolhas pessoais. O escritor encarava a página em branco e se dedicava a elaborar e polir suas ideias por meio da reescrita, vista como aperfeiçoamento da autoria e não como seu substituto. A tecnologia servia como ferramenta auxiliar, sempre a serviço do humano, que detinha a autoridade sobre a criação original.

No entanto, a emergência de sistemas capazes de produzir textos completos com fluência e estilo desafiou essa noção. Agora, máquinas podem gerar enunciados que simulam um ‘eu’ por trás das palavras, tornando indistinguível a autoria humana da algorítmica. Para quem escreve profissionalmente, detalhar se há uma consciência ou intencionalidade por trás desses textos não é o ponto central, mas sim o impacto provocado pela produção automatizada. Isso representa uma inquietação fundamental: ao nível do conteúdo e da forma, o que diferencia a autoria humana da artificial?

A escrita escolar diante das inteligências artificiais

Na esfera educacional, este quadro se torna ainda mais delicado. O uso intensivo dessas tecnologias pode levar estudantes a perderem o contato com o processo reflexivo entre o pensamento e a palavra. O intervalo que permite a elaboração intelectual e o aprendizado se reduz quando a IA antecipa respostas e formulações, tornando a escrita um ato mecânico. Mais do que o risco de respostas incorretas, o problema está na supressão da construção de sentido que é essencial à formação do pensamento crítico.

Contudo, a simples rejeição da IA nas escolas é inviável, pois alunos já a utilizam amplamente. A proposta, então, é que professores abracem esse recurso, transformando-o em uma oportunidade pedagógica. Ao aceitar a reescrita algorítmica como ponto de partida, os estudantes podem ser desafiados a revisar e refazer textos inicialmente gerados por máquinas, garantindo que aprimorem sua compreensão, reformulem o conteúdo com suas próprias palavras e construam argumentos originais.

Reescrever como exercício de autoria e discernimento

Esse exercício de reescrita pode ser crucial para desenvolver habilidades metacognitivas, ao fazer o aluno distinguir entre mero repetir e compreender profundamente o que está dizendo. A mediação do professor é fundamental para recuperar a singularidade do texto humano em meio à homogeneização produzida por inteligências artificiais. A escrita humana carrega imperfeições que evidenciam escolhas, hesitações e o pensamento em construção, algo que a produção algorítmica tende a apagar.

Por isso, cabe à escola o desafio de ensinar a importância da lentidão, do cuidado e da atenção no ato de escrever. Mesmo que o ponto de partida seja um texto gerado por IA, a prática da escrita exige presença interior, reflexão e escuta de si. O papel do professor é guiar os alunos nesse caminho estreito entre o humano e o algorítmico, ajudando-os a encontrar e afirmar sua própria voz, mesmo que isso envolva múltiplas reescrituras.

Em um mundo marcado pela velocidade e superficialidade, reafirmar o valor da escrita como processo complexo, que envolve tempo e esforço, é uma missão educativa imprescindível. Assim, a inteligência artificial pode deixar de ser um inimigo à formação intelectual para tornar-se uma ferramenta de enriquecimento, quando utilizada com crítica, criatividade e suporte pedagógico adequado.


Da redação do Movimento PB – adaptação de artigo original publicado no Jornal da USP
MPB-IA-31102025-0A3F2B1C4D-19